Em pleno fim de século, a imagem de estudantes de saias pregueadas fazendo a oração da manhã em um colégio interno parece cena de cinema. Ou de novela mexicana. Afinal, as cidades mais distantes já têm escolas e a pedagogia moderna pede o contato diário dos pais com seus filhos. Mas, para alguns, manter os rebentos nessas escolas é uma maneira de afastá-los de más companhias e oferecer um ensino de melhor qualidade. Para sobreviver à massificação da escola pública e dos colégios preparatórios para o vestibular, os internatos tiveram de se livrar da imagem de reformatórios. Castigos foram abolidos e o isolamento é combatido com internet e telefone. Cercados de amigos, os alunos têm mais liberdade do que se estivessem em casa.

No passado, toda criança mandada para um internato apavorava-se com os horários rígidos, a comida de exército e surras de palmatória. Hoje, as alunas do Colégio Mãe de Deus, o mais antigo de Londrina, a 390 quilômetros de Curitiba, no Paraná, riem dessas histórias. O colégio é um dos últimos remanescentes entre tradicionais internatos católicos como Sacré Coeur de Marie e Maristas, que nos últimos anos viraram externatos ou fecharam de vez, por falta de alunos. Uma das únicas escolas do País a aceitar somente meninas, tem 700 alunas, mas apenas 20 são internas. Vindas de Estados como Roraima, Rondônia e Mato Grosso, cada uma tem o próprio quarto, come o que bem entende e só leva bronca dos pais, por telefone. Com idades entre 11 e 20 anos, elas passam as tardes fazendo cursos de música, alemão, pintura ou etiqueta.

Após dois anos no internato, a formanda Priscila Lima, 17 anos, recém-aprovada no vestibular para medicina, acredita ter aproveitado melhor a adolescência ali do que quando morava em Guarapuava, no Centro-Oeste do Paraná. “Lá eu nunca podia sair à noite e, se ia à casa de uma amiga, tinha de levar meu pai ou meu irmão junto”, conta. A amiga Melícia Boni, 17 anos, também acredita ter conquistado a independência. “Aqui tem a chatice de usar uniforme e ter horário para tudo, mas não é um bicho-de-sete-cabeças”, diz. Nascida em Boa Vista, Roraima, ganhou a confiança do pai para viajar sozinha e fazer inglês e cursinho fora. Ela quer estudar fisioterapia em Maringá.

Sinal dos tempos, as mesmas alunas que usam saia até para fazer educação física falam sobre qualquer assunto sem medo de ficar ajoelhadas no milho. Numa das últimas aulas, sobre como andar de salto alto, Franciele Zanatta, uma caloura de 14 anos, de Ji-Paraná, Rondônia, arriscou: “É para eu empinar o bumbum?” A fisioterapeuta Isabel Rezende, 38 anos, só corrigiu: “Isso se chama encaixar o quadril.” A rigidez, no caso do Mãe de Deus, se aplica à seleção. Este ano, dos 45 pedidos de matrículas, apenas seis foram atendidos. Pais que queriam colocar nos eixos filhas rebeldes eram despachados. “Internato não é reformatório”, diz a diretora, irmã Dionéia Lawand.

Essa realidade é bem diferente da que vivem os internos da Escola Técnica Estadual Professor Urias Ferreira, em Jaú, no interior de São Paulo. O colégio, um dos 99 mantidos pelo Centro de Educação Tecnológica Paula Souza, ligado ao governo, oferece cursos de agricultura e pecuária. A maior parte dos alunos é formada por filhos de agricultores das classes C e D, que ingressa na escola por meio de vestibulinho e paga taxas mensais de R$ 35 pela hospedagem. Nos anos 70, o local chegou a contar com 540 alunos de todo o País. Hoje são menos de 150 – 135 meninos e 11 garotas –, a maioria do interior paulista. Eles ficam na escola durante a semana e vão para casa na sexta-feira.

Cuidar de porcos e galinhas, tratar da horta e fabricar linguiça são algumas de suas atividades diárias, válidas como estágio. “Assim, vou treinando para quando tiver meu negócio”, diz Adilson Coelho, 18 anos. Para participar dos trabalhos os alunos só trazem para o alojamento o mínimo necessário – jeans e camisetas, boné e um par de botas. Mas o quarto de Danilo Purro, 16 anos, tem até guarda-roupa e tanquinho. Como os pais se mudaram para Porecatu, no Paraná, Danilo, ou Espigão, por causa de seu 1,90 m de altura, deve ficar na escola até 23 de dezembro. Em seu armário, pacotes de biscoito se misturam a artigos de higiene e cartas da namorada. “Todo fim de semana passo meia hora falando com ela. Com minha mãe, dez minutos dá”, confessa. Diariamente, Espigão e o colega Silvano José da Silva, 19 anos, pulam da cama às 5h30 e vão para o curral tirar leite. Às 7h30, já têm de estar na sala de aula, de banho tomado, para as lições teóricas. Para Silvano, que nasceu em um sítio em Ibaté, no interior de São Paulo, lidar com os bichos e plantações é uma espécie de diversão. “Trabalho com gosto porque é para o nosso consumo. Se a gente não zelar, não vai para a frente.”

Com apenas três funcionários para vigiar os 56 dormitórios, é difícil evitar problemas disciplinares. A permanência das meninas na escola só foi admitida há dois anos e em 1999 a escola registrou um caso de gravidez. Em outubro, foi convocada uma reunião de conselho para votar pela expulsão de dois alunos pegos com maconha. “A escola só recebe R$ 5 mil por mês e contamos com os meninos para nos ajudar a manter a ordem”, diz a diretora, Teresinha Bianco. “Assim como fazem abaixo-assinados para usar bermuda na sala ou jantar mais tarde no verão, eles criam regras.”

Mas pelo menos uma rede de escolas encontrou no sistema de internatos mistos o segredo de sua sobrevivência. O Instituto Adventista de Ensino do Nordeste, localizado no município de Cachoeira, a 135 quilômetros de Salvador, na Bahia, e mantido pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, abriga 450 alunos, da 7ª série do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. Cerca de 90% dos alunos são protestantes – muitos, filhos de pastores, que pagam mensalidades de R$ 600 para educá-los segundo os preceitos da Igreja.

Por pressão dos alunos, nos últimos anos o internato se equipou com agência de correios, escola de inglês, seu próprio provedor de internet, piscina, academia e telefones nos quartos. “Escola que não se atualiza fecha”, declara o diretor acadêmico, pastor Paulo Mendonça. A direção divide com os pais a responsabilidade pela conduta dos alunos: eles são informados a cada deslize e assinam uma espécie de contrato dizendo quantas vezes por mês o filho poderá fazer passeios fora e se terá permissão para namorar, por exemplo.

Instalados em duas alas de dormitórios distantes 40 metros uma da outra, meninos e meninas só ficam juntos nas aulas. Nos cultos, eles de um lado, elas do outro. Mas a proibição ao namoro é facilmente burlada após as aulas, na praça do colégio. Ao ver um casal mais juntinho, os preceptores apenas pedem: “Deixem espaço para o anjo!” Nessa terra de Peter Pan, os adolescentes sentem-se livres para aprontar. Ewerton Goulart Pinto, 15 anos, de Itabuna, no interior da Bahia, diz que, por mais que seja cheia de regras, a vida no colégio é boa. “Como somos adventistas e não podemos ir a shows ou beber, nos divertimos com as babas (futebol) e a zoeira do pessoal”, conta. Uma das brincadeiras mais recorrentes é apelidar as iguarias servidas no refeitório: o cuscuz salgado vira engasga-gato e um hambúrguer de soja tamanho gigante, jegue-burguer. Frequentemente, são recolhidos fogareiros em poder dos meninos. Como o jantar à servido às 18h, eles fazem refeições clandestinas com macarrão e cachorro-quente. Ewerton vende sanduíches a R$ 1. “Poder não pode, mas se ninguém estiver olhando…” 

A rotina de Ewerton no instituto adventista
O dia começa com
aula de informática
Depois de almoçar
e fazer a lição, uma pelada com amigos
Encerrado o descanso, hora de se aprontar
para o jantar
Com sua melhor
roupa, degusta o
jegue-burguer de soja