PERNAMBUCO Escola da ONG, em Catimbau: alunos chegam à faculdade (Crédito:Chico Audi)

Há um ditado, sempre mais comum quanto mais aumenta a miséria de um país, a dizer que o certo não é dar o peixe ao pobre mas ensiná-lo a pescar. Assim, esse princípio serve muitas vezes para justificar a misantropia e o egoísmo de quem não quer ajudar aos necessitados de alimentos, água, educação e saúde — aos carentes de tudo isso, e aos precisados também de um abraço. A psicóloga, empresária e empreendedora social paulista Alcione Albanesi, fundadora da ONG Amigos do Bem, combinou razão e coração, fé e coragem, ecumenismo e determinação. Colocou o pé na estrada e inutilizou tal provérbio com uma única pergunta: “Como ensinar a pescar se o rio está seco?”. No caso de Alcione, o rio ao qual ela se refere não funciona como metáfora ou força de expressão, é rio seco mesmo. Trata-se do Nordeste brasileiro, o semiárido mais populoso do mundo e um dos mais sofridos. É a essa região que a Amigos do Bem dedica o seu trabalho desde 1993, quando foi fundada. Nunca se viu nada igual no Brasil. Na terra arrasada do sertão, Alcione e toda a sua família criaram quatro cidades em três estados: Pernambuco, Alagoas e Ceará. Cuidam de cento e quarenta povoados. Têm sob o seu zelo, mensalmente, setenta e cinco mil pessoas. Montaram escolas, postos de saúde, poços artesianos e os denominados “centros de transformação”, que envolvem oficinas de trabalho, cursos, palestras, aulas de alfabetização. Ou seja: a família Albanesi proporciona duzentos por cento aos desvalidos sertanejos nordestinos. E, repare-se, ao seu estilo dotado de empatia, não está deixando de ensinar a pescar.

TRABALHO Fábrica de Beneficiamento de Castanhas: dignidade e renda (Crédito:Chico Audi)

Agora, leitor, respire fundo. Alcione, para fazer o que faz, abriu mão de toda a sua fortuna, fortuna de quem chegou a ser a maior fabricante de lâmpadas de LED no Brasil, a marca FLC — com direito a setenta e uma viagens à China, onde foi dona de sete fábricas, para aperfeiçoar o seu negócio. “Não penso no quanto de dinheiro que eu perdi. Penso no quanto de vida que eu ganhei”, diz ela. “Como mulher, dei muito mais braçadas para alcançar o sucesso, principalmente no ramo de lâmpadas, que era predominantemente masculino”. Os que vêm para o mundo com a missão de fazer o bem, vêm carregando na alma um “contrato com Deus”, como define a própria Alcione. Missão é missão, parece que começa de forma aleatória. Não foi diferente com Alcione. Quando criança, sentava-se sobre caixotes no Ceasa, em São Paulo, e azucrinava os ouvidos dos feirantes até que eles lhe dessem verduras ou frutas que ela levava a carentes. Cresceu na idade, cresceu na altura, cresceu largo e profundo no coração.

DOAÇÃO Voluntários embalam cestas básicas: carinho e cuidado (Crédito:Divulgação)

Ela é feito imã

Voltemos a 1993, e é Natal. Juntamente com vinte amigos e amigas, Alcione parte para o semiárido com o objetivo de doar cestas básicas, roupas e brinquedos. Isso se repetiu até 2003, quando ela sentiu que não bastava ir somente nos finais de ano para ajudar a população, fazia-se necessário visitá-la com assiduidade. Mais tempo correu. Está-se, agora, em 2014. Veio a epifania: Alcione decide vender a fábrica que liderava o mercado e, desde então, não somente a sua vida, mas também a vida de toda a família que ela envolveu no projeto, passou a ser a vida dos moradores do sertão: todos os meses, é nele que ela passa pelo menos quinze dias. “Mal chego a São Paulo e já quero voltar”, diz Alcione. Nada disso significou, e ela jamais deixaria que significasse, o abandono dos quatros filhos — pelo contrário, Alcione queria que eles fizessem parte da história que estava sendo construída, e isso de fato ocorreu. O seu marido, o também empresário Ricardo Yolle, sempre a apoiou em todas as decisões.

SAÚDE Médicos no sertão: 187 mil atendimentos por ano (Crédito:Divulgação)

Como Alcione é excessivamente atarefada, cada momento ao lado da família nunca deixou de ser valorizado por todos. Os Albanesi gostam, por exemplo, de jantar sentados no sofá, mais que à mesa. Compartilham a vida, riem e desabafam, um com o outro, os problemas do dia a dia. Por isso, os filhos, ainda na faixa etária entre infância e adolescência, estranharam quando a mãe pediu para que eles colocassem a melhor roupa e ocupassem a sala de jantar. Sentiram que algo estava prestes a mudar-lhes o destino. E foi o que aconteceu. “A partir de agora vocês terão de me dividir com outra família”, afirmou ela. Pelo fato de constantemente plantar a semente do bem em todos eles — Caroline, Juliene, Richard e Sérgio —, foi natural e inevitável a consequência de os filhos, quando crescidos, mergulharem no projeto. O sertão passou a ser, então, uma responsabilidade familiar. “Eu não consigo me ver longe da minha mãe e nem do Amigos do Bem, porque esse trabalho é uma extensão dela”, diz Caroline. “Minha mãe tem um espírito corajoso e persistente”. Na verdade, coloque-se nela coragem e persistência elevadas a última potência! Feito isso, dá para imaginar o empenho de todos os Albanesi e o principal resultado colhido: a transformação do habitante do paupérrimo sertão do Nordeste.

Quem ousaria imaginar que, em meio à terra onde faltava água, e comida era coisa rara, jovens conseguiriam um dia cursar universidades? Quem diria que no deserto, onde nada é nada mesmo, Alcione conseguiria fazer brotar cidades? Pois bem, a mulher de 1,74 metro de altura, energia contagiante e otimismo que funciona feito imã realizou tudo isso. As cidades se chamam Mauriti, Torrões, Inajá e Catimbau. Ela erigiu e segue erguendo escolas, fábricas de processamento de castanha de caju, de produção de doces e de pimenta em conserva (cerca de mil e cem pessoas estão empregadas). Monta oficinas de costura e artesanato, constrói casas de alvenaria, poços artesianos (oitocentos e quarenta e cinco milhões de litros de água são distribuídos anualmente), centros de saúde e até fornece óculos a quem deles precisa, após consulta médica. “Eu pedia a Deus para que os meus filhos não morressem de fome”, diz a sertaneja Dalvanira Ramos da Silva Leite. Pela atuação da Amigos do Bem, tanto ela quanto os seus seis filhos estão sempre alimentados. Mais: eles estão na escola.

“Somos o que fazemos”

A Amigos do Bem criou não somente cidades, mas, também, um projeto autossustentável. As unidades de produção, por exemplo, geram trabalho e lucro, os produtos são vendidos em redes parceiras em todo o País e o valor arrecadado é investido na educação de crianças, jovens e adultos, contabilizando um milhão de atendimentos educacionais por ano. Além disso, mais de quinhentas bolsas em faculdades foram conseguidas para pessoas que, como a hoje pedagoga Bruna Carvalho, nasceram em meio à fome. “Eu e meus irmãos menores repartíamos a pouca comida que tínhamos”, diz ela. A Amigos do Bem tem um conselho consultivo que ajuda a tocá-la para frente, integrado por outros empresários dispostos na construção de um Brasil social e financeiramente menos desigual.

UNIÃO A família Albanesi em live com voluntários, cujos rostos aparecem na tela: “O projeto é uma extensão da minha mãe. Todos os filhos são apaixonados por ela”, diz a filha Caroline (com o microfone) (Crédito:Divulgação)

Para os necessitados há, no entanto, há algo maior, infinitamente maior: é zero a dúvida de que as próximas gerações dos Albanesi prosseguirão no caminho da ONG. E seguirá valendo uma frase escrita em diversas fotos nas quais estão Guiomar de Oliveira Albanesi e Serafim Antonio Albanesi, mãe e pai de Alcione. Ao se olhar tais fotos, lê-se: “Viver não é um simples espaço de tempo entre o nascer e o morrer, é dinamizar a vida com atos de fraternidade”. Pode ser que Alcione saiba, pode ser que não, mas com certeza essa frase tem as bênçãos do Padre Antônio Vieira: “Só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas duramos. Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe”.