O documentário sueco Sacrifício: quem traiu Guevara? ganhou o primeiro prêmio no festival É Tudo Verdade, em São Paulo, evento considerado o mais importante do gênero na América Latina. Exibida no Brasil apenas uma vez, a película não teve a mesma receptividade em Paris, onde vivem alguns dos protagonistas do último ato da tragédia de Ernesto Che Guevara nas selvas da Bolívia. Ao contrário, o documentário foi até acusado por alguns de estar a serviço do regime comunista cubano. Isso porque o filme sugere que foi o escritor e filósofo francês Régis Debray quem revelou aos militares bolivianos a presença de Guevara na Bolívia. Até então, atribuía-se essa revelação ao pintor argentino Ciro Roberto Bustos, que fez desenhos dos guerrilheiros para os oficiais. Debray e Bustos tinham ido à Bolívia para se encontrar com Che e acabaram presos em Camiri (sul boliviano) em 20 de abril de 1967. Na verdade, Sacrifício retoma velhas acusações contra Debray, mas desta vez a pecha de dedo-duro feita a ele foi baseada principalmente em depoimentos inéditos do próprio Ciro Bustos, que hoje vive na Suécia. Debray sempre foi uma figura polêmica, uma espécie de enfant terrible da esquerda mundial. Principal teórico do castrismo nos anos 60, renegou a violência armada e se tornou crítico ferino do regime cubano. Foi assessor do presidente socialista François Mitterrand, mas hoje se diz admirador do general Charles de Gaulle.

“Esse documentário é mal-intencionado e totalmente manipulado pelos cubanos. Tudo isso é indigno, uma infâmia. Fidel Castro considera Régis Debray um inimigo pessoal e não hesita em utilizar a calúnia contra aqueles que ele não pode chamar de gusanos (vermes), como ele faz com toda a oposição”, disse a ISTOÉ Dariel Alarcón Ramírez, o legendário comandante Benigno, um dos líderes da Revolução Cubana de 1959. “Eu desafio Ciro Bustos a repetir essas coisas na minha cara, na presença de quem ele quiser. Quero ver se ele tem coragem”, desabafa Benigno. Cubano, 61 anos, eterno companheiro de Che Guevara, Benigno é um dos quatro sobreviventes da guerrilha guevarista na Bolívia. Toda sua vida foi ligada à epopéia de Che. Camponês analfabeto, aos 17 anos ele se juntou aos rebeldes barbudos que lutavam contra a ditadura de Fulgêncio Batista. Esteve em Sierra Maestra ao lado de Che e de Camilo Cienfuegos. Até o nome de guerra, Benigno, foi inventado por Guevara, que o considerava um homem bom e leal. Ele aprendeu a ler e escrever com Che na selva, chegando até o ginásio com exames passados entre um combate e outro. Depois da vitória da revolução, em 1959, foi guarda-costas de Guevara. Voltou a lutar ao lado de Che na fracassada operação do Congo, em 1965, e foi escolhido por ele para formar a elite dos guerrilheiros que deveria desencadear uma revolução continental a partir da Bolívia. De volta a Cuba, Benigno foi o responsável pela formação militar de guerrilheiros internacionais, inclusive brasileiros, e atuou em várias missões secretas. Decepcionado com os rumos do regime cubano, exilou-se na França em 1994, na defecção mais importante dos últimos 30 anos.

Para Benigno, os comportamentos de Debray e Bustos na Bolívia eram opostos. “Quando chegou na Bolívia com Bustos, Debray estava feliz de estar conosco e se comportou imediatamente como um guerrilheiro, agiu como companheiro, enquanto Bustos parecia um camaleão, sempre encostado numa árvore, sem falar com ninguém. Entre os combatentes, todos adoravam Debray, ninguém gostava de Bustos”, diz. Segundo o comandante, Debray nem precisava aprender nada, já que seu papel era de mensageiro. “Já Bustos deveria continuar a luta de Che na Argentina e foi levado para ver as grutas que estávamos fazendo para guardar material da guerrilha, armas, comida, remédio. Ele ajudou a cavar, viu tudo. Debray nunca viu uma única gruta, porque não era seu papel. A única gruta não descoberta foi a que Bustos não conhecia”, lembra Benigno.

“A única qualidade que esse indivíduo tem é ser bom pintor. Com os desenhos que ele fez de nós na guerrilha, qualquer Exército nos achava”, relata Benigno. “Já que ele abriu a boca, porque não contou como traiu seus companheiros na guerrilha de Salta, na Argentina, comandada por Jorge Ricardo Masetti, anos antes da luta na Bolívia? Vários companheiros morreram porque ele falou. Eu jurei que não mataria mais ninguém, mas se encontrasse esse indivíduo, acabaria abrindo uma exceção. Ele é um ser desprezível e sem escrúpulos”, ataca o comandante.

Elo com o mundo – “Eu tenho sérias dúvidas sobre a competência do júri que deu um prêmio a um filme desse tipo. Não há nada de novo, nenhum furo. Eles omitem tudo o que não endossa a tese que defendem, inclusive o que é público e notório e faz parte da História”, acusa a escritora e antropóloga venezuelana Elisabeth Burgos, ex-companheira de Debray. “Um exemplo é o prefácio de Fidel Castro ao Diário do Che na Bolívia”, diz. Ali, o ditador cubano lamenta, entre outras coisas, que Guevara tenha morrido sem saber da “atitude firme e valente” que Debray teve diante de seus torturadores.

Elisabeth fala de cátedra. Ela esteve no centro do furacão da época. Viveu três anos em Cuba e estava em Havana quando Debray foi para a Bolívia encontrar Guevara. Várias vezes foi chamada para trocar idéias com Fidel Castro. Em 1968, ela foi para a Bolívia e se casou com Debray na prisão de Camiri, para ter o direito de visita. Elisabeth foi o único elo do filósofo francês com o mundo durante os quase quatro anos em que ele ficou preso. Incansável, liderou uma campanha mundial pela libertação de Régis Debray e de Ciro Bustos, que tinham sido condenados a 30 anos de prisão. “Meu objetivo não é defender ou acusar quem quer que seja. Meu único interesse é restabelecer a verdade histórica”, explica. Em janeiro, quando começou a polêmica a respeito do filme, Elisabeth enviou uma carta aberta aos jornais, denunciando a nova onda de acusações contra Debray como uma campanha de vingança política do regime cubano. Ela não deu entrevistas sobre o assunto antes, mas aceitou reconstituir a história dos prisioneiros de Camiri e da guerrilha de Che para ISTOÉ.

“Havia uma enorme diferença no tratamento dos prisioneiros. Régis Debray chegou a entrar em coma de tão espancado que foi, como eram, aliás, todos os presos na Bolívia. Mas ninguém nunca bateu em Ciro Bustos, porque ele falou imediatamente, o que foi constatado por várias testemunhas, como o comandante Rubens Sánchez, presente nos interrogatórios”, diz Elisabeth. “Não acuso Bustos”, continua a antropóloga, “mas é evidente que a diferença entre o tratamento dele e o de Debray vinha do comportamento que cada um deles teve na prisão. Bustos salvou a própria pele, mas não era obrigado a mostrar onde ficavam as grutas, com comida, remédios, passaportes, tudo de que a guerrilha precisava”, recorda.

Omissões – Elisabeth também critica o fato de que fontes importantes não foram citadas no documentário. O comandante Manuel Piñero, por exemplo. Responsável pelo Departamento América Latina dos serviços secretos cubanos e homem-chave dessas operações, ele deu uma entrevista em 1998 dizendo que não é porque Debray mudou de opinião sobre a revolução cubana que deve ser acusado de ter entregado Che. Ele disse textualmente que o delator era Ciro Bustos. Pouco depois, Piñero morreu num acidente de carro. “Não posso dizer se existe uma relação de causa e efeito, mas fiquei muito surpresa que ele fosse contra a versão oficial. E, além disso, Piñero nunca dava entrevistas”, lembra Elisabeth.

Outros testemunhos também não foram mencionados no filme. “O general Arnaldo Saucedo Parada, chefe da 8ª divisão do Exército, que teve os prisioneiros sob sua custódia, escreveu no livro Não atirem… eu sou o Che que a guerrilha foi descoberta no dia 11 de março, quando os desertores Vicente Rocabado Terrazas e Pastor Becerra disseram que o chefe era Che Guevara.” A informação foi confirmada no dia 18 de março por outro rebelde capturado, Salustio Choque, e reconhecida por Debray e Bustos no dia 8 de maio. “Eles foram presos no dia 20 de abril e, diante das evidências, não podiam continuar negando. No livro, o general explica como os militares chantagearam Bustos, tanto usando os remédios de que ele precisava para controlar sua asma como propondo uma redução de pena. Assim, o argentino fez os retratos dos guerrilheiros e dos cinco desenhos das grutas”, diz a antropóloga.

Para Elizabeth, atualmente Ciro Bustos é muito ligado ao ministro do Interior cubano, Abelardo Colomes Ibarra, o Furry, que participou da guerrilha de Salta, na Argentina. “Agora que eles precisam de Bustos e ele se tornou útil para acusar Debray, foram buscá-lo para cumprir esse papel”, acusa. E ela não economiza críticas ao regime que um dia apoiou fervorosamente: “Nada acontece em Cuba sem que Fidel saiba ou dê ordens expressas. Quando você conhece a maneira como funciona o aparelho e o regime cubano, é tudo muito claro”, afirma, com conhecimento de causa. “A calúnia, a difamação – essa forma de assassinato moral que é o descrédito público – é a maneira de responder às criticas vindas de estrangeiros”, dispara a antropóloga. “Fidel Castro já acusou de serem agentes da CIA o jornalista de esquerda K.S. Karol, a líder comunista italiana Rosana Rossanda e o escritor espanhol Jorge Semprún, entre outros, por ousarem discordar dele. A idéia de que uma oposição de esquerda esteja se formando é totalmente insuportável para Fidel. As prisões cubanas estão cheias de gente de esquerda. Como Fidel não pode acusar de gusanos, direitistas ou agentes da CIA gente como Régis Debray ou o comandante Benigno, ele tenta outros meios para desacreditar, inclusive a calúnia”, avalia Elisabeth.

Benigno é o alvo – Até na Suécia, o documentário Sacrifício foi contestado. Segundo o jornalista Carlos Manuel Estefania, diretor da revista Cuba Nueva, editada em Estocolmo, os únicos “sacrifícios” do documentário são a verdade e Régis Debray. “Se estivessem interessados em descobrir a veracidade dos fatos, os autores do filme, já que foram até a França, deveriam ter entrevistado o comandante Benigno. Se tivessem feito isso, teriam que ouvir como Fidel traiu Che e destruiu outros movimentos revolucionários latino-americanos”, afirmou Estefania a ISTOÉ. “Esse documentário parece ter sido encomendado por Fidel. Assim que ele saiu na Suécia, escrevi que ele iria ganhar um prêmio, provavelmente no Festival de Havana. Foi em São Paulo”, ironiza o jornalista cubano.

Régis Debray afirma que já disse tudo o que tinha a dizer em seus livros e se recusa a falar nessa polêmica da delação de Che. Em conjunto com Benigno, ele emitiu um comunicado em resposta às acusações da filha de Guevara, Aleida, que há meses disse que Debray entregara seu pai aos bolivianos. “Aleida, essa coitada, é como um moleque de recados. Essa patacoada stalinista não passa de uma triste ironia. Não tenho que voltar ao assunto toda vez que o regime de Havana, que se transformou na caricatura dele mesmo, quer cuspir em seus antigos amigos. O aparelho policial cubano me persegue porque eles acreditam, erradamente, aliás, que estou organizando uma resistência ao regime e incentivei o comandante Benigno, o mais próximo e fiel companheiro de Che, a se exilar”, lamentou Régis Debray. “Através de Debray é o comandante Benigno que está sendo visado”, avaliou o Le Monde, em artigo assinado por Edwy Plenel, diretor do jornal.

“O que é lamentável é que uma impostura como esse documentário acabe se impondo como verdade e que ainda ganhe prêmios. As gerações passam, se renovam, e você sempre pode enganar os novos. Para os jovens isso pode ser novo, mas nós conhecemos bem esse filme”, lamenta Elisabeth. “O problema é a verdade histórica. A América Latina continua vivendo de mitos”, sentencia.