Lançamento
“Enciclopédia Negra”
Flávio dos Santos Gomes Jaime Lauriano Lilia Schwarcz
Companhia das Letras
687 págs.
Preço: R$ 89,90

Personalidades negras em todas as áreas da sociedade fazem parte da vida do País desde o século 16, mas sua presença nos livros de história é restrita a poucos nomes. No campo cultural, são sempre enaltecidos Machado de Assis e Aleijadinho; reflexões sobre o abolicionismo evocam José do Patrocínio e Luiz Gama; metáforas relativas à resistência costumam invocar a mítica figura de Zumbi dos Palmares.

“Enciclopédia Negra – Biografias Afro-Brasileiras”, importante projeto documental da editora Companhia das Letras, tem como objetivo reverter esse cenário. Com suas quase 700 páginas, esse lançamento permitirá ao público em geral ter acesso ao perfil de 550 personalidades negras, de sexo, gênero e orientação sexual distintos, das mais diversificadas profissões, origens e faixas etárias. São profissionais liberais, mães que lutaram pela alforria de suas famílias, curandeiros, médicos, líderes religiosos e ativistas políticos. Em 417 verbetes, os autores Flávio dos Santos Gomes, Lilia Moritz Schwarcz e Jaime Lauriano apresentam didaticamente uma série de biografados que viveram desde o período da escravidão até os dias de hoje. A ideia é reestabelecer o protagonismo negro na história do povo brasileiro — parcela que já corresponde a 56,1%, ou seja, a maioria da população.

Segundo o co-autor Flavio dos Santos Gomes, historiador e professor da UFRJ, o projeto levou cinco anos e teve como critério abranger todas as regiões do Brasil e apresentar o mesmo número de perfis de homens e mulheres. “Reunimos em um único volume todos os arquivos que existem sobre esses personagens, do século 16 aos dias de hoje”, afirma, lembrando que o livro inclui apenas pessoas que já morreram. “Há registros históricos de muitos eventos, mas sem menção aos protagonistas negros. Como no caso dos guias de expedições importantes”, explica o professor. “E a história é assim: você só acha aquilo que procura.” Os autores desejam ainda que o livro vire ferramenta educativa usada por professores em salas de aula.

Há biografias interessantes em todas as páginas. Na letra “P”, temos “Petronilha, africana natural da Guiné, que no século 16 foi acusada de participar da seita religiosa ‘Santidade de Jaguaripe’; na letra “I” lemos sobre “Ivone Lara, “Dama do Samba”, neta de africanos e ex-escravizados que aprendeu a tocar cavaquinho com os tios, gente da música que conhecia Pixinguinha e Donga”; na letra “M” descobrimos que “Mestre Valentim foi filho de um fidalgo português e de uma escravizada já nascida no Brasil, artista célebre e o primeiro a produzir estátuas fundidas em bronze no país”. A cada história, uma vida redescoberta, uma pequena mas importante dose de conhecimento eternizado para as próximas gerações.

Pinacoteca

“Reunimos em um único volume todos os arquivos que existem sobre esses personagens, do século 16 aos dias de hoje” Flávio dos Santos Gomes, professor da UFRJ e co-autor de “Enciclopédia Negra” (Crédito:Divulgação)

O projeto inclui ainda uma exposição organizada pela Pinacoteca de São Paulo. A mostra exibirá retratos de 120 biografados feitos por 36 artistas negros contemporâneos. Além de serem representações artísticas relevantes, foi a solução encontrada pelos autores para ilustrar parte dos biografados citados — muitos deles sequer possuem imagens conhecidas. Entre os artistas que participam do projeto estão Antonio Obá, Ayrson Heráclito, Michael Cena7, Rodrigo Bueno e Sônia Gomes. A mostra fica em cartaz até 11 de outubro, quando as obras serão incorporadas ao acervo.

Apesar do recrudescimento do movimento pela igualdade racial, motivado pelo assassinato do americano George Floyd, Gomes vê um retrocesso da situação no Brasil. “O racismo piorou. A população negra aumentou e as condições pioraram. O problema não é apenas o indivíduo, mas o racismo estrutural”, afirma. “É a desiguldade social, o acesso à saúde, educação. Há alguns anos tínhamos mais negros matriculados na faculdade de medicina da UFRJ do que hoje. Se você entrar em um hospital, haverá negros nas áreas de limpeza e arrumação. Os médicos, no entanto, serão todos brancos.” Para reverter a situação, ele acredita em democracia e políticas públicas. “O racismo não é problema só dos negros. É uma questão essencial da sociedade brasileira.” A “Enciclopédia Negra” é um passo importante para que esses protagonistas sejam conhecidos — e respeitados, seja qual for a cor da pele.