O presidente Fernando Henrique Cardoso reuniu a corte brasiliense no Palácio do Planalto para comemorar o quinto aniversário do Plano Real. Numa rápida cerimônia na tarde da quinta-feira 1º, fez seu discurso e recebeu cumprimentos típicos das solenidades corriqueiras da capital. A farra mesmo, neste ano, ocorreu na terça-feira 29, por volta da meia-noite, no plenário do Congresso. Ali, sob a égide do Real, cerca de 20 parlamentares aprovaram uma nova tungada no Tesouro Nacional permitindo que a União role a dívida de alguns municípios. Uma bagatela de R$ 22 bilhões que todos os brasileiros pagarão para limpar as contas dos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Guarulhos, Osasco e Campinas. O argumento nobre dos governistas é de que, devido à sensibilidade do mercado a turbulências, não seria conveniente deixar que prefeituras dessem o calote em suas dívidas. Além do mau exemplo, isso quebraria o Banco do Brasil, para onde foram empurrados R$ 6 bilhões dos títulos emitidos pelo governo paulistano. O ministro do Orçamento, Pedro Parente, não gostou da notícia, mas afirma que está no script do plano econômico o reconhecimento de dívidas antigas, os famosos "esqueletos guardados no armário" por administrações anteriores.

Pedro Parente só não explicou que no caso do BB quem guardou o esqueleto no armário foi a própria equipe econômica, que referendou a transferência dos títulos paulistanos do Banespa para o Banco do Brasil. Ao limpar em 1995 a carteira do antigo banco estatal paulista para viabilizar sua privatização, o governo varreu a sujeira contábil para debaixo do tapete do BB. De quebra, FHC cortejou o PPB de Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo. Apesar de integrar a base governista, o senador Paulo Hartung (PSDB-ES) chiou como um autêntico adversário contra a rolagem das dívidas: "Isso é um show de irresponsabilidade fiscal justamente do governo que propôs a lei de responsabilidade fiscal."

Os aliados do governo, no entanto, não param de criar novos "esqueletos", como o que foi montado pelo presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), padrinho político do próprio Pedro Parente. Sob a encomenda de ACM, o Congresso aprovou na mesma festa a prorrogação da medida provisória que trata dos incentivos ao setor automotivo. Tudo para encher os olhos da Ford e levar a montadora a instalar sua nova fábrica na Bahia, depois que o governador gaúcho, Olívio Dutra, negou-se a conceder novos benefícios à empresa. O contrato entre a montadora e o governo baiano vai contemplar mais uma renúncia fiscal, facilitando a vida da empresa e piorando o resultado das contas públicas. A decisão contraria entendimentos que o Brasil vinha tendo com a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os sócios do Mercosul, todos críticos dos benefícios tributários dados aos fabricantes de automóveis no Brasil. Desde já, desagradou ao ministro-chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho, que vem tentando convencer o presidente a vetar as alterações na MP e tomar a decisão inusitada de enfrentar o senador baiano. "Não vai haver veto", avisou ACM, logo que soube dos arroubos palacianos.

Os dois episódios que marcaram a festa dos cinco anos do Real mostram que, depois do susto com a desvalorização cambial em janeiro, o governo e o Congresso voltaram a baixar a guarda diante da crise. "Enquanto não houver um verdadeiro ajuste fiscal no País, não teremos condições de ingressar num regime de taxas de juros baixas", prega o deputado federal Antônio Kandir (PSDB-SP), que não gostou da aprovação a toque de caixa da MP da Ford. "O País está correndo riscos com a renúncia fiscal e a discordância da OMC", lembrou. Essa impressão é compartilhada pelo economista Fábio Giambiagi, especialista em contas públicas do Departamento Econômico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). "Poderíamos ter tido um desempenho fiscal melhor nesses anos se o governo tivesse sido mais rigoroso nos gastos que estão sob seu comando", reclama Giambiagi. No mesmo suntuoso prédio do BNDES, o presidente da instituição, José Pio Borges, não pensa da mesma forma. Ele anunciou que o banco está reservando a bagatela de R$ 1,5 bilhão para financiar a aventura automobilística baiana com juros subsidiados.

A falta de rigor nesse caso é patente. Um estudo recente elaborado pelo economista João Alberto de Negri, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), mostra que os incentivos às montadoras provocaram um aumento de 25% no preço real médio dos veículos nos dois primeiros anos de vigência e prejudicaram a indústria nacional de autopeças. A perda para os consumidores, segundo Negri, já chegou a R$ 35,6 bilhões e, ao que parece, vai continuar crescendo. O combate à leniência fiscal, portanto, continua sendo o principal desafio do Plano Real depois de cinco anos de luta contra a inflação. O Fundo Monetário Internacional (FMI) mandou uma missão a Brasília dias atrás para rever os números da economia. Os técnicos de Washington acharam que a recessão não será tão grave (1% em vez de 4%), disseram que a inflação está sob controle, mas não aceitaram mexer na meta fiscal. O superávit primário do setor público deve ser de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Nem mais nem menos. Para chegar lá, a equipe econômica teve de anunciar metas de inflação maiores do que o mercado financeiro esperava. Inflação maior, metas fiscais mais fáceis de serem atingidas, raciocina o governo. Para o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, porém, o problema não é tão simples. "As metas altas podem ajudar o governo a alcançar as metas negociadas com o FMI, mas criam o risco de uma reindexação na economia", alertou Franco, temendo que os preços e salários passem a ser reajustados pelas metas inflacionárias anunciadas na quarta-feira 30 pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan. De acordo com as novas regras, o BC deverá manter a inflação em 8% neste ano, 6% no ano 2000 e 4% no ano 2001. Para facilitar as coisas, essas metas contemplam uma variação de dois pontos percentuais, para cima ou para baixo.

Se melhoram a situação do governo no acordo com o FMI, as altas metas para a inflação também deverão adoçar o discurso político da base governista, que vem reclamando taxas de juros mais baixas. O BC, no fundo, ganhou mais liberdade para reduzir as taxas e incentivar a recuperação da economia. "Desde que entramos na crise, em 1997, a massa salarial foi reduzida e isso comprimiu muito as vendas", conta Dênis Ribeiro, diretor econômico da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). O tom é de crítica, mas a expectativa para o futuro é positiva. Os economistas prevêem um crescimento de 4% do PIB em 2000 e a certeza de que a taxa de desemprego vai finalmente recuar. Na Grande São Paulo, o índice de trabalhadores em busca de emprego parou de crescer depois de bater os 20%. O economista Antônio Prado, coordenador técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), acredita que o desemprego tenha atingido seu pico e ingresse numa "lenta e continuada trajetória de queda". Nas estatísticas do real, porém, nem tudo é digno de comemoração. Apesar do controle da inflação, o desemprego e a recessão impedem avanços por mais justiça social. O Brasil continua sendo a nação com pior distribuição de renda no mundo. Aqui, os 10% mais ricos têm 50% da renda nacional, índice superior a países como Zâmbia (46,4%), Quênia (45,8%) e Paraguai (44,2%), segundo dados do Ipea.