“UTIs improvisadas aumentam mortes por covid-19 no Brasil”

Com sobrecarga e falta de profissionais, até 80% dos entubados não sobrevivem. Para Associação de Medicina Intensiva Brasileira, abrir leitos não pode ser única resposta à pandemia e custa mais que auxílio emergencial.No segundo país do mundo com mais mortes em consequência da covid-19, a abertura de novos leitos de unidade de tratamento intensivo (UTI) não acompanha o número de vítimas graves. Com a alta no número de hospitalizações no Brasil desde o início do ano, e a média móvel de mortes batendo recordes semana após semana, formou-se um fila de espera por leito em diversos estados. Mais de 355 mil brasileiros não resistiram à espera e morreram.

Apesar do aumento surpreendente de vagas em UTIs desde dezembro último, o Brasil já extrapolou seu limite em termos de criação de leitos adequados há muito tempo, avalia a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). Um indicador seria a taxa de mortalidade observada nas UTIs: até 80% dos pacientes entubados não sobrevivem, adverte Ederlon Rezende, do conselho consultivo e coordenador do Projeto UTIs Brasileiras da Amib.

Além das jornadas extenuantes dos trabalhadores indispensáveis na terapia intensiva, como médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas, a situação de colapso é agravada pela falta de profissionais disponíveis no mercado para ocupar as novas vagas.

Para Rezende, a abertura desmedida de leitos de UTI é feita de forma improvisada. “E UTI não aceita improviso”, ressalta.

Em entrevista à DW Brasil, o médico representante da Amib critica a abertura de leitos como política única de enfrentamento da pandemia. “Quando se faz isso, não há uma preocupação com o resultado, em salvar vidas, mas em colocar as pessoas para dentro, dizer que elas tiveram acesso ao sistema”, afirma.

“Se há mais leitos, mesmo quando há aumento do número de casos, de internações, de óbitos, a taxa de ocupação cai por um cálculo matemático. Logo, diz-se para a população que é possível continuar a vida normal. E isso tem sido muito ruim”, diz.

Até que outras medidas de combate à pandemia sejam adotas, o sistema de saúde vai continuar sob pressão. “Eu torço muito para eu estar enganado e para que aconteça uma mudança”, diz.

DW Brasil: O aumento de leitos de UTI tem sido tratado como solução para enfrentar o cenário crítico atual da pandemia no Brasil. É viável seguir abrindo UTIs ou o país já atingiu o limite?

Ederlon Rezende: Já atingimos o limite há muito tempo. Quando se está diante de uma pandemia, o objetivo central é salvar vidas. Para conseguir isso, há dois caminhos basicamente: aumentar a capacidade do sistema do saúde e controlar a curva de crescimento de casos. Essas ações visam evitar o colapso do sistema.

No Brasil, tivemos um aumento do numero de leitos de UTIs surpreendente. O país é um dos países do mundo que mais têm leitos de UTI per capita. [Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), eram 45.848 leitos antes da pandemia. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferecia 22.844, e a rede privada, 23.004].

Só que eles são mal distribuídos do ponto de vista social e regional. Há uma maior disponibilidade de leitos para uma pequena parcela da população, 25%, que dispõe de um seguro saúde. Esses 25% contam com metade desses leitos. A outra metade é para os 75% que utilizam o SUS. Em termos regionais, há uma maior concentração no Sul e Sudeste; e uma carência muito mais marcante no Norte e Nordeste.

Nós conseguimos aumentar leitos de uma maneira extraordinária. Mas fizemos diferente de outros países, onde a estratégia inicial foi aumentar a capacidade do sistema e, no momento seguinte, conter o número de casos enquanto a taxa de vacinação não atingir uma taxa adequada. E para isso só tem uma caminho: paralisação da circulação das pessoas para conter a disseminação do vírus. No nosso país, isso nunca aconteceu.

Pelo contrário: “descobriu-se” que quando há mais leitos, a taxa de ocupação cai. Isso é claro, se há mais leitos, mesmo quando há aumento do número de casos, de internações, de óbitos, a taxa de ocupação cai por um cálculo matemático. Logo, diz-se para a população que é possível continuar a vida normal. E isso tem sido muito ruim.

Quando se abrem leitos de UTI desmedidamente, isso é feito de maneira improvisada. E UTI não aceita improviso. É preciso uma boa equipe, bem treinada, bem capacitada, além da estrutura adequada. Abrir leitos de maneira improvisada faz com que os resultados não sejam os mesmos de quando os limites da capacidade são respeitados.

Como se sabe que os limites foram ultrapassados?

Na UTI, o resultado está muito relacionado aos recursos humanos, à qualidade do trabalho de equipe, ao quanto essa equipe consegue realizar seus processos com precisão e segurança.

Na hora em que se começa a sobrecarregar essa equipe, ou improvisar com profissionais que não são adequadamente treinados e qualificados, os resultados são ruins.

Quando se começa a obter informações de que dados indicam que até 80% dos pacientes submetidos à ventilação mecânica morrem, isso, além da gravidade da doença, está relacionado à sobrecarga do sistema, ao colapso.

Pelos dados que temos, podemos acompanhar que no último trimestre houve aumento de mortalidade em todas as regiões do país. Isso mostra claramente o colapso do sistema.

Quer dizer que o aumento da mortalidade dos pacientes com covid-19 não está relacionado apenas à gravidade da doença, mas reflete também as condições das UTIs?

A gravidade da doença é um fator importante. Mas estudos feitos no momento em que o sistema estava colapsado, como no estado de Nova York, mostraram uma mortalidade de 82%; em Londres, também foram mostrados índices dessa magnitude; assim como em Milão.

No Brasil, temos dados que mostram que em UTIs que conseguem funcionar com um grau de organização, dentro do que se espera de uma boa UTI, os resultados são muito diferentes. As taxas de mortalidade, apesar da gravidade da doença, são bem menores. Giram em torno de 50%, e não dos 80% que têm sido mostrados como média nos dados da Fiocruz, que são levantados diretamente do Sivep-Gripe (Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe).

De quanto foi o aumento dos leitos nesses meses de pandemia?

O aumento do número de leitos tem sido muito dinâmico. Todo dia, a gente vê uma declaração de que esse número foi aumentado.

No primeiro ano de pandemia, houve uma corrida de abertura de leitos que começou em março de 2020. Chegamos a agosto com aumento de mais de 50%. Depois que passou a primeira onda, muitos desses leitos foram fechados, e retomamos essa abertura de novos leitos a partir do fim do ano passado. De novo, atingimos aumentos ainda maiores, de cerca de 65%.

Para se ter uma ideia, na França, onde a população é de 67 milhões, existem 5.500 leitos de UTI para tratamento de covid. No estado de São Paulo, com 44 milhões de habitantes, existem 13 mil leitos. É claro que São Paulo não tem mais profissionais que atuam em terapia intensiva que a França. É claro que há uma grande quantidade de profissionais que não são adequadamente qualificados para atuarem nas UTIs [em São Paulo].

Não sou contra a abertura de leitos. É indigno as pessoas morrerem na rua sem terem acesso ao sistema de saúde. O problema todo por trás disso é usar a abertura de leitos como política única de enfrentamento da pandemia. Quando se faz isso, não há uma preocupação com o resultado, em salvar vidas, mas em colocar as pessoas pra dentro, dizer que elas tiveram acesso ao sistema.

O país abre leitos sem que existam suficientes profissionais qualificados para lidar com a complexidade da doença nas UTIs?

Na primeira onda, a dificuldade foi a aquisição dos equipamentos, principalmente os de ventilação mecânica. Hoje isso não é mais problema, até porque o Brasil talvez seja ainda o único país do mundo que continua com essa ideia de abrir leitos de UTI.

Nesse momento, o problema maior é a falta de profissionais. Recentemente, no Rio de Janeiro, houve uma promessa do novo ministro [da Saúde, Marcelo Queiroga], e do governador [interino, Cláudio Castro], de que abririam novos leitos de UTI nos hospitais federais. Mas eles até agora não foram disponibilizados por uma simples razão: ninguém consegue profissionais.

No estado de São Paulo, nem os hospitais privados estão conseguindo contratar. Para formar um profissional experiente, que atue numa terapia intensiva, são necessários muitos anos.

É claro que nós, intensivistas, agradecemos muito a ajuda que tivemos de vários profissionais de outras especialidades, dos recém-formados. Graças a eles que está se conseguindo dar conta disso tudo, porque a sobrecarga tem sido muito grande. Mas isso não é ideal, é uma tentativa de se remediar uma situação que foi criada.

Sobre a capacidade de abertura de leitos de UTI, quais são as principais diferenças entre o sistema público e os hospitais particulares? As dificuldades são as mesmas?

Nesse momento atual da crise, as dificuldades de abertura de leito são enfrentadas pelos sistemas privado e público. Entretanto, o sistema privado tem muito mais facilidade sob o ponto de vista de negociar valores pagos. O sistema público às vezes está atrelado à necessidade de concursos.

Por conta disso, o colapso no sistema privado também é menos importante que no público – embora tenhamos visto nas últimas semanas pessoas aguardando na fila para serem internadas em hospitais privados de ponta em São Paulo. Mas nada se compara ao que foi enfrentado pelas pessoas que aguardavam um leito do SUS.

Infelizmente, o impacto e o colapso sempre são maiores e mais sentidos pelas pessoas que dependem do sistema público de saúde.

A Amib também tem dados sobre disponibilidade de leitos dos hospitais militares? [Uma reportagem recente da Folha de São Paulo mostrou que os hospitais das Forças Armadas têm 85% dos leitos vagos sem atender civis].

Esses leitos estão fora do nosso banco de dados.

Temos dados dos leitos registrados no CNES [Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde]. Os hospitais militares também teriam que registrar os seus leitos lá. Mas esses dados, como foi bem anunciado, não têm sido utilizados para atender a população civil, apenas os militares.

Diante desse panorama, como o senhor olha para os próximos capítulos da pandemia no país? O sistema deve continuar em colapso?

Olho com muita precaução. Em Sao Paulo, há algumas indicações de que o número de internações começaram a diminuir, mas o número de óbitos continua aumentando. Estamos num patamar em que o número de infectados e hospitalizados é muito alto para se achar que a situação esteja sob controle.

A minha impressão é de que é muito difícil que as coisas aconteçam de uma maneira diferente se não forem tomadas atitudes. Ou seja, controlar de alguma forma a contaminação das pessoas, quer seja por meio de vacinas – e estamos muito lentos nesse sentido – quer seja por meio de medidas mais austeras de regulamentação da circulação das pessoas. No mundo inteiro foi assim, e não sei o que faz as nossas autoridades acreditarem que no Brasil vai ser diferente.

Temos no nosso país uma questão social muito grave. Há uma grande parcela da população que precisa sair de casa para comer o pão de cada dia. Mas é aí que é muito importante o papel do governo de criar condições para que essas pessoas possam ficar em casa. Isso sai muito mais barato do que os bilhões gastos em UTIs com pessoas que chegam morrendo.

Ate lá [que essas outras medidas de enfrentamento da pandemia sejam adotadas], o sistema de saúde vai continuar sob pressão. Não tenho nenhuma dúvida, infelizmente. Eu torço muito para eu estar enganado e para que aconteça uma mudança.