Entre os desafios que aguardam o homem na virada do século, talvez nenhum seja mais intimidador do que a falta d´água. Pode parecer estranho falar em escassez num planeta composto por dois terços de água, mas, do total de 1,5 bilhão de quilômetros cúbicos (1,5 bilhão de trilhões de litros), 97,5% é salgada. Só 2,5% da água da Terra é doce. Parece pouco? Pois 68,9% desses 2,5% estão nos pólos congelados e 29,9%, em lençóis subterrâneos. Cerca de 0,9% dos 2,5% está nos pântanos. “Temos disponível em lagos e rios 0,3% do total de água doce, ou 0,007% da água do planeta”, diz o engenheiro húngaro Andras Szöllösi-Nagy, 50 anos, secretário do programa hidrológico e diretor da divisão de ciências das águas da Unesco, organização educacional, científico e cultural das Nações Unidas.
Para piorar, a população cresceu três vezes no século XX, enquanto o consumo de água aumentou seis vezes. O problema não é exclusividade de países desérticos. Mesmo o Brasil, que abriga 16% da água do mundo, sofre com racionamento, graças à má administração dos recursos e da infra-estrutura. “Quando o assunto é água, não há vencedores e perdedores. Compartilhar é o segredo”, ensina Szöllösi-Nagy, que chegou ao Brasil na quinta-feira 10, para participar do 31º Congresso Internacional de Geologia, que acontece até quinta-feira 17, no Rio de Janeiro.

ISTOÉ – Que uso é feito da água?
Andras Szöllözi-Nagy – Dos 42 mil quilômetros cúbicos de água doce existentes, 3,8 mil são utilizados anualmente. Destes, 70% são para irrigação. A indústria usa 20% e os 10% restantes são para uso doméstico. A tendência é assustadora. A população mundial triplicou no século XX, mas o consumo de água sextuplicou! Em 25 anos, a disponibilidade de água per capita caiu pela metade.

ISTOÉ – Até pouco tempo, havia a crença de que a água era um recurso inesgotável. Afinal, qual é a situação do Planeta?
Szöllözi-Nagy
– Se não mudarmos nossa relação com a água, estaremos em situação muito séria num momento próximo, neste século (que começa em 2001). Mas não vivemos um cenário apocalíptico, como o fim total da água ou uma guerra iminente no Oriente Médio. Há soluções. Estou otimista. As ferramentas estão aí. Precisamos usá-las.

ISTOÉ – Quais ferramentas?
Szöllözi-Nagy
– É tentador dizer que tecnologia é a resposta. Ela é só parte da resposta. A crise da água é um aspecto de uma crise geral do modelo de desenvolvimento calcado no crescimento tecnológico ilimitado. A aplicação de mais tecnologia não pode resolver o problema. É necessária uma resposta cultural e ética. Como o principal consumo é na agricultura, é onde qualquer mudança faz diferença. Há técnicas como a criação de plantas que toleram água um pouco salgada e engenharia genética para diminuir a demanda por água da plantação. Existem iniciativas bem boladas de economia e reuso, como saneamento seco (sem descargas), coleta e estoque da água da chuva; e tecnologias para reciclar nutrientes de água do esgoto para a agricultura.

ISTOÉ – Quais as principais causas da situação atual?
Szöllözi-Nagy
– Nós mesmos. A demanda de água per capita mais do que dobrou, graças a um estilo de vida mais sofisticado, e a agricultura se apóia em irrigação. Há cidades onde o desperdício gerado por vazamentos chega a 70% da água consumida. Para consertar os canos é preciso apenas tapar furos.

ISTOÉ – Quais as recomendações da Unesco?
Szöllözi-Nagy
– A Organização das Nações Unidas (ONU) se preocupa com isso desde 1972. Ocupa espaço em fóruns como a conferência sobre água e meio ambiente ocorrida em Dublin (Irlanda), em 1992, que foi um prelúdio da Rio-92. Os princípios de Dublin enfatizam a finitude e a vulnerabilidade da água e a necessidade da abordagem participativa no uso e aproveitamento; determinam que se cobre pela distribuição e pela própria água; reconhecem a água como bem econômico e destacam o papel central da mulher. Em muitos lugares, coletar água é um papel feminino. Educar e dar poder às mulheres na gerência da água é um bom investimento. Tivemos ótimos resultados na Mauritânia, melhorando a qualidade da água e da saúde, já que 80% das doenças estão relacionadas com a água.

ISTOÉ – Quais as regiões mais afetadas pela crise?
Szöllözi-Nagy
– Os países áridos enfrentam desafios mais assustadores. Além do Oriente Médio, há áreas onde a escassez limita o crescimento sócio-econômico. O Norte da África, o sul da bacia do Nilo, a bacia do Mar de Aral, e a região central da Ásia estão em situação muito difícil. A escassez pode ser fonte de conflitos, mas também fator de cooperação. Basta lembrar do acordo de partilhamento da água entre Israel e Jordânia, fundamental para o processo de paz. Quando o assunto é água, não há vencedores e perdedores, pois até os vencedores perderão no futuro. Compartilhar é o segredo.

ISTOÉ – Mesmo com bastante água no País, algumas cidades brasileiras precisam racionar. Por quê?
Szöllözi-Nagy – Há áreas úmidas, como a Amazônia, e outras mais secas, como o Nordeste. Mas a maior explicação é o que ouvi de um especialista. Ele me perguntou para onde a água corria. Em direção ao mar, respondi. Errado, ele disse, na direção do dinheiro.