Tomado momentaneamente por uma leveza milagrosa, o bailarino de corpo maciço se lança num salto de tirar o fôlego, dá uma pirueta e, já no solo, retoma vigoroso o movimento que parecia ter-se congelado por instantes. Momentos mágicos como este, hoje vistos quase exclusivamente na chamada dança clássica, ainda são cultivados com técnica, emoção e elegância pelo Ballet Bolshoi, de Moscou, uma instituição de mais de dois séculos de existência que virou sinônimo do que há de melhor no gênero. Há 11 anos sem se apresentar no País, a mítica companhia russa, uma das maiores e mais populares do planeta, estréia na quarta-feira 5, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a temporada de 20 dias que se estenderá por São Paulo, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Joinville e Curitiba. Na bagagem, traz dois balés antológicos do seu repertório – Spartacus e Raimonda – e as tradicionais Galas, que reúnem trechos dos mais célebres espetáculos do Bolshoi, como a cena do balcão de Romeu e Julieta, com música de Prokofiev, e o adágio de O lago dos cisnes, de Tchaikovski.

Apesar da crise econômica que assola a Rússia, o Bolshoi não abriu mão de toda a pompa, trazendo na turnê suas principais estrelas do momento. Entre elas o bailarino Nikolai Tsiskaridze, 25 anos, que encabeça o elenco de Raimonda, cuja coreografia original sobre o amor de uma donzela por um cruzado data de 1898. Spartacus, grandiosa versão para os palcos da rebelião de escravos ocorrida na Roma antiga, criada em 1968 especialmente para Vladimir Vassiliev, diretor-principal artístico do Teatro Bolshoi, que antes de abandonar as sapatilhas foi um dos maiores nomes masculinos da companhia, também se alinha entre as maiores criações do balé russo. "Essas duas produções são de um tempo em que vivíamos outra realidade, tanto econômica quanto artística", explicou Vassiliev a ISTOÉ. "Não tínhamos problemas de verbas e as coisas podiam ser monumentais." Uma grandiosidade que se mede pelos próprios números históricos da companhia. Fundado em 1776, o Teatro Bolshoi – que engloba o balé e a produção lírica – reúne mais de 900 artistas, entre cantores, bailarinos, atores, músicos e mímicos. Neste contingente, destacam-se 61 bailarinos solistas e um corpo de baile com 142 integrantes.

Para manter uma programação anual de 280 espetáculos, 2.500 pessoas se ocupam da respeitável estrutura, que se espreme com a minguada verba estatal de US$ 12 milhões. "Foi um golpe duro ter que se preocupar de um momento para o outro com dificuldades financeiras", afirma Vassiliev, que lamenta a sedução natural que a Europa e os Estados Unidos exercem sobre as jovens estrelas, de olho em melhores rendimentos. "Mas sempre existem aspectos positivos nas mudanças." As mais bem-vindas dizem respeito à própria tradição da dança, encarada pelos russos como uma verdadeira religião.

 

Orgulho russo – Instituição nacional avessa às influências externas, o Bolshoi mudou e passou a incorporar em seu repertório de 25 balés anuais coreografias do inglês John Cranko e do americano de origem russa George Balanchine. No ano 2000 pretende também convidar nomes de vanguarda, como Jiri Kylian e William Forsythe, para renovar suas temporadas que se estenderão a um teatro anexo direcionado apenas à produção contemporânea. "Estamos com uma visão mais realista da arte e de suas possibilidades. Hoje somos mais independentes e aprendemos a usar esta independência", confessa o diretor-principal.

Vassiliev rebate inclusive a famosa crítica de que, ao contrário do Kirov, outro baluarte da dança russa, o Bolshoi às vezes se perde num mar de sentimentalismo. "Somos um povo sentimental mesmo, cheio de arroubos, festas, amores e brigas. Somos muito intensos e isto se reflete na dança." A companhia de Moscou selecionou para a turnê brasileira solistas do porte de Nikolai Tsiskaridze, Inna Petrova e Sergei Filin, todos do primeiro time, segundo Vassiliev. "Sou suspeito para falar disto, mas os russos têm uma enorme vocação para a dança, incentivada desde cedo nas escolas", afirma. "Aliado ao fato de sermos muito obstinados, sentimos um grande orgulho de manter nossas tradições e temos uma enorme fome de sermos os melhores. Por isso sempre produzimos grandes bailarinos para o mundo." Aos 58 anos, o ex-bailarino – que desde 1995 abraçou seu cargo ocupado durante três décadas pelo todo-poderoso Yuri Grigorovich – não sente ciúmes de ver os pupilos receberem os aplausos em cena aberta que antes lhe eram dirigidos. "Parei quando achei que devia parar. Na verdade, nem saudade dá. É um tempo muito sacrificado."