Anos 50. O cenário poderia ser a fazenda em Plainfiled, Wisconsin (EUA) e o protagonista Ed Gein, que cortava cirurgicamente suas vítimas, extirpava seus órgãos para comê-los, arrancava a pele e fazia objetos, como máscaras e vestes. A psicopatia de Ed, que mantinha a mãe morta no quarto da velha casa, serviu de base para três filmes de terror: Psicose, Massacre da serra elétrica e Silêncio dos inocentes. Ed foi preso em 1958 pelo FBI e morreu de câncer em 1982 num manicômio judiciário. Ano 2000, a cidade é a pacata Curitiba e o terror não está relacionado a homicídios cometidos por um serial killer, mas ao comércio ilegal de corpos e órgãos humanos. Durante os últimos seis anos, a solicitação de cadáveres para estudos de universidades que atuam na área biomédica do Sul e Sudeste do País transformou-se num negócio altamente rendoso, envolvendo diretamente o ex-diretor do IML de Curitiba, Francisco Miguel Roberto de Moraes Silva, conhecido como Chico Louco, o técnico de Anatomia Humana Sérgio Luís Pereira, a fundação (Fecepasc) ligada à Faculdade Espírita Paraná-Santa Catarina, a Faculdade Tuiuti, da qual Chico Louco é professor de Medicina Legal no curso de Direito, e o coronel da reserva do Exército Sidney Lima Santos, dono da Tuiuti. Chico Louco foi exonerado da direção do IML em fevereiro, acusado de cometer inúmeras irregularidades, fraudes e atos criminosos. No “Esquema Frankenstein”, como está sendo chamado, se vendiam às universidades “peças” humanas a um custo de R$ 1.800 (leia detalhe do contrato da Fecepasc na pág. 38). O cadáver era dividido em partes – cabeça, tronco e membros – e também tinha os órgãos e tecidos extirpados e repartidos. No preço, já estava incluída a “confecção”, termo técnico usado para definir o preparo das partes encomendadas através de formol e verniz a fim de seguirem para as faculdades para a manipulação e estudo. Sérgio, que é funcionário da Faculdade Tuiuti, foi contratado pela Fecepasc, sem vínculo empregatício e com um pró-labore de R$ 1.800, para prover a instituição de material necessário para aulas práticas em laboratório, além de treinar duas funcionárias. No documento citado, de 13 de novembro de 1996, Sérgio teria ainda de “confeccionar” quatro cabeças, duas laringes, três corações, quatro pulmões, três bexigas, quatro estômagos, dois jejuno-ileo (parte final do intestino delgado), dois intestinos grossos, quatro testículos, dois úteros e músculos, “além de recuperação de peças”.

Os cadáveres eram obtidos, em sua maioria, no IML de Curitiba, até então dirigido por Chico Louco, que autorizava a liberação de corpos fora do que determina a Lei 8.501, que habilita as faculdades a receber, por doação, cadáveres inteiros para estudo. Segundo a lei, para doar um corpo não identificado ou não reclamado seja doado a uma universidade é preciso, antes, atender a uma série de requisitos. A morte tem de ser natural, nunca violenta nem suspeita. Depois, é preciso notificar, através da imprensa, durante dez dias, a existência desse corpo, com a descrição de todas as suas características físicas (cor, altura, cor de cabelo, olhos, idade aproximada, local onde morava e profissão) e esperar 30 dias para saber se houve ou não identificação. Só após esse prazo legal é que o Estado pode decidir o que fazer com os restos mortais daqueles não identificados. Uma outra exigência é dar ao cadáver estudado um enterro digno, em cova única, pertencente à instituição educacional.

Pedidos – Sérgio recebia as encomendas e acionava o “Esquema Frankenstein” no IML e até em funerárias ligadas à máfia. Ele os recebia, fazia o desmembramento, a extirpação e a confecção das encomendas no laboratório da Faculdade Tuiuti, repassando as “peças” para as universidades que usavam seus serviços. Sérgio agia com o técnico do setor de identificação do IML, Roberto Taylor, chefiado por Chico Louco, que comandou esse serviço durante seis anos. Os restos humanos não aproveitados pelo comércio ilegal acabavam em uma cova coletiva do cemitério municipal da Santa Cândida, em nome da Tuiuti. Entre as instituições que teriam comprado partes de corpos desviados pelo IML, segundo já investiga a Delegacia de Homicídios do Paraná, estão a Universidade de São Paulo (USP), as universidades estaduais de Londrina e de Maringá, a Universidade do Oeste do Paraná (Unicentro), em Irati (PR) e a Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), em Tubarão. As vendas, sempre através da Tuiuti, eram camufladas em contratos de prestação de serviço, tais como o assinado entre a Faculdade Espírita e Sérgio Luís. ISTOÉ teve acesso ao depoimento de um ex-professor de Anatomia, Carlos Antônio Cardoso, que confirmou o esquema criminoso, envolvendo também o coronel Sidney, dono da Tuiuti. Ele autorizava a liberação de dinheiro para subornar funerárias e coveiros, usados pelo esquema.

Cardoso disse ao delegado Falzen Salmen que o diretor do IML na época, Francisco Miguel, sabia do comércio de cadáveres. A mando dele, Taylor liberava os corpos para a Tuiuti. “Os cérebros, por exemplo, eram cortados no formato de bolachas”, para facilitar a venda, disse em seu depoimento. O ex-professor, que trabalhou na Tuiuti de março de 1995 a junho de 1996, contou à polícia ter testemunhado a chegada de corpos na faculdade. Segundo ele, Sérgio recebia semanalmente de dois a três, que chegavam em “veículos do IML, carros funerários e até particulares, acondicionados em caixões”. Na Tuiuti, além de Sérgio, a polícia investiga o envolvimento de João Henrique Faryniuk, chefe do laboratório de Anatomia. Ele seria o responsável, segundo Cardoso, pelo suborno pago a agentes funerários, cartórios e até coveiros para acobertar os falsos sepultamentos. O dinheiro viria da tesouraria da faculdade. O comércio ilegal de cadáveres e órgãos humanos para estudos seria feito com o conhecimento do coronel e dos seus filhos, Luiz, Afonso e Guilherme, diretores da Tuiuti. Um outro professor que ainda leciona na faculdade disse a ISTOÉ que, depois que o esquema começou a ser investigado, a Faculdade Integrada Espírita se livrou de vários “peças” que estavam em seu laboratório.

 

Foragidos – Procurado por ISTOÉ, Roberto Taylor confirmou o envolvimento da Faculdade Tuiuti no esquema. A ordem, segundo ele, vinha sempre de Chico Louco. “Ele chegou um dia e me pediu prioridade total para a Tuiuti. Disse que não interessava quantos cadáveres a faculdade, através de Sérgio, requisitasse. Para não perder o emprego, obedeci”, contou. Acima de Taylor, estão a chefe do Necrotério, Marilza Zaven Guimarães, e o chefe da Divisão Técnica do IML da capital, Marcos Souza, que apesar do afastamento de Chico Louco permanecem nos cargos. Sérgio Luís e Taylor foram depor na semana passada e confirmaram a história toda à polícia. Eles foram indiciados e estão foragidos. O coronel Sidney negou qualquer participação na venda ilegal de cadáveres através da sua faculdade. Disse ter afastado os funcionários Sérgio Luís e João Henrique Faryniuk e aberto uma sindicância. Mas manteve Chico Louco no quadro de professores.

O esquema funcionava de forma planejada. O alvo eram os cadáveres carimbados como “não identificados” e “não reclamados” pelo IML. De cada dez corpos que chegam ao instituto, um é de indigente. Na média feita por legistas, cerca de 40 corpos por ano deveriam parar em alguma faculdade. O esquema contribuía para aumentar esse número. Chico Louco negou ter participado e chamou Sérgio e Taylor de doentes mentais. No entanto, uma comissão de legistas que tenta moralizar o IML promoveu um levantamento mostrando que, em quatro anos, 280 cadáveres foram doados, sendo 200 para a Tuiuti. A média permitida é de no máximo três cadáveres por faculdade para uso de 175 alunos/ano.

Para que ninguém notasse a diferença entre os cadáveres que entravam e os que saíam do IML, Chico Louco e Roberto Taylor, com a ajuda de Sérgio Luís, enterravam em covas coletivas no Cemitério Santa Cândida somente os restos não vendidos dos cadáveres. As mortes eram registradas, por meio de Fichas de Acompanhamento Funeral, nos cartórios da cidade – principalmente no Registro Civil do 3º Ofício e no Distrital do Uberaba. Só o 3º Ofício recebe por mês 200 fichas de óbitos, sendo pelo menos 60 de indigentes. Depois do registro, o corpo estava pronto para ser enterrado ou doado para uma faculdade. Os documentos então eram entregues à Funerária Paranaense, que encaminhava à Central de Luto do Município de Curitiba uma guia de sepultamento, invariavelmente no Cemitério Santa Cândida, destino final de nove entre dez indigentes da capital paranaense.

A quantidade de enterros chamou atenção: havia algo de podre no reino do IML e da Tuiuti. Consta no livro de registro do Cemitério Santa Cândida que somente no dia 30 de setembro de 1999, no setor GF, quadra 8, lote 48, sepultura 93.381, foram enterrados 23 corpos. A cova pertence à Faculdade Tuiuti. Outro registro mostra que o esquema vem de longe. No dia 9 de maio de 1996, mais sete cadáveres foram enterrados em outra sepultura, no setor G, quadra 2, lote 43, também de propriedade da Faculdade. A descoberta das covas coletivas mostra que existe uma desova clandestina de restos humanos, oriundos do esquema. A maioria dos 30 cadáveres foi liberada no IML por Sérgio Luís. ISTOÉ examinou todas as certidões de óbito, muitas delas assinadas pelo próprio Sérgio. É o caso da certidão 15.291, de um “desconhecido” com idade e parentesco “ignorados”, que teria morrido de cirrose hepática no dia 7 de outubro de 1994 – 1 ano e sete meses antes de seu suposto funeral.

Investigação – O esquema de venda de pedaços humanos foi denunciado ao senador Roberto Requião (PMDB-PR), que entregou a ISTOÉ um dossiê com cópias de contratos para venda e “confecção” de órgãos humanos, do livro de entrada de corpos do IML e de atestados de óbito. “É um escândalo inominável, um crime de vilipêndio”, ataca. O senador defende a entrada da Polícia Federal nas investigações. Requião estava certo quando suspeitava que as covas estariam guardando apenas restos de quem deveria estar ali por inteiro. Na quarta-feira 28, o delegado Falzen Salmen, acompanhado dos médicos legistas Wilson Bozzi de Sá, Carlos Roberto Faccin e Vitório Lunardon, exumou nas covas da Tuiuti despojos que seriam de 23 cadáveres. Na reconstituição, os legistas só conseguiram recompor dez troncos, todos sem crânio, faltando alguns membros superiores ou inferiores. Faltavam partes de 13 cadáveres.

O deputado estadual Ricardo Chab (PTB), membro da Comissão de Segurança Pública, tem sido ameaçado por denunciar as irregularidades de Chico Louco. O senador Requião disse ter recebido um organograma da quadrilha, que aponta como chefe do esquema o próprio Chico Louco, funcionário do IML há 42 anos. Exonerado do cargo, foi acusado de ser conivente com um esquema de falsificação de laudos para o recebimento do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores (DPVAT) e de assédio sexual contra pelo menos duas meninas, vítimas de estupro, que se submeteram a perícia no seu instituto. O Ministério Público também impetrou ação civil pública contra o ex-diretor do IML por improbidade administrativa e enriquecimento ilícito. Ele cobraria honorários para fazer laudos particulares, contrariando os laudos oficiais do próprio instituto.