No prefácio do livro Music for chameleons, de Truman Capote, há duas idéias determinantes: “Quando Deus te dá um dom, também te dá um chicote. E o chicote é unicamente para autoflagelar-se.” As frases e seu autor foram escolhidos a dedo pelo diretor espanhol Pedro Almodóvar para acalentar o principal desejo de um dos personagens de seu 13º filme comercial, o extraordinário Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, Espanha, 1999), estréia nacional na sexta-feira 8. Elas também se encaixam como uma luva para descrever o redemoinho criativo de Almodóvar, cujos tipos à beira de um ataque de nervos vivem suas insanidades, sempre ultrapassando limites. O livro de Capote foi dado a Esteban (Eloy Azorín), um belo rapaz com talento para literatura. Era presente de sua mãe, Manuela (Cecilia Roth), no dia em que ele completava 17 anos. Os dois têm um relacionamento de amigos. Mas só depois de uma noite fatídica é que Manuela descobre uma tristeza abafada na incipiente alma de intelectual de Esteban. Depois de assistirem à peça Um bonde chamado desejo, encenada por Huma Rojo – papel da intensa Marisa Paredes –, mãe e filho esperam a atriz na saída do teatro. Esteban quer um autógrafo dela. Chove a cântaros. Rapidamente Huma toma um táxi. É seguida por Esteban que, no desespero, é atropelado e morre. Está montada a tragicomédia almodovariana com todas as vertentes possíveis de acontecer tanto no mundo alucinado do cineasta quanto nos delírios inconfessáveis de qualquer ser humano.

Tudo sobre minha mãe, prêmio de melhor direção do Festival Internacional do Filme de Cannes de 1999, é a maturidade cinematográfica de Pedro Almodóvar, o melhor diretor espanhol da atualidade e um dos melhores da “nova” geração mundial. Para realizá-lo, ele deu uma bela limpada na estética kitsch que permeava seus trabalhos e sofisticou as imagens, mantendo a essência dos devaneios, das sacadas irônicas cheias de referências, do humor perverso que provoca riso imediato ou complacência. Em Carne trêmula, o diretor já caminhava nesta direção. Só que radicalizou na assepsia e quase perdeu a identidade, apesar de ter realizado um belo filme. Mas Tudo sobre minha mãe é incomparavelmente melhor. Na determinação de entender o âmago da Espanha, sintetizado nas cidades de Madri e Barcelona, Almodóvar refletiu preconceitos, carências, amizades, seres solidários em seus defeitos, qualidades e loucuras.

Logo em seguida à morte de Esteban, Manuela lê no inseparável bloco de anotações do filho a confissão: “Esta manhã vasculhei o quarto de minha mãe até encontrar um maço de fotos. Em todas faltava a metade. Meu pai, suponho. Tenho a impressão de que na minha vida me falta esse mesmo pedaço…” A justificativa para a desculpa de que o pai havia morrido é aparentemente defensável. Esteban-pai, na realidade, é Lola, um travesti que se vira na noite de Barcelona, para onde Manuela se muda com a intenção de encontrá-la (o) e lhe contar que eles tiveram um filho. Lá ela revê Agrado – performance esplêndida de Antonia San Juan –, um travesti debochado, de coração enorme. É a partir daí que as intrincadas histórias de cada personagem, todos embrenhados num mundo de pirações, começam a se entrelaçar levando o espectador a um total delírio cúmplice. Pedro Almodóvar é assim. Um tradutor bizarro da alma humana, que provoca diversão e até choro no meio de uma gargalhada.