O Museu do Prado, construído a mando do rei Carlos III e inaugurado em 1819, sempre cumpriu o seu objetivo de fazer de Madri uma das maiores capitais da Europa no campo da cultura. Séculos voaram, guerras e catástrofes ocorreram, e o seu prestígio se mantém. Desde a semana passada, ele sedia uma exposição indubitavelmente considerada um marco histórico: pela primeira vez, desde o século 16, as mitológicas pinturas de Ticiano Vecellio, encomendadas pelo mecenato de Felipe II, rei da Espanha entre 1555 a 1598, estão reunidas para apreciação do público – a mostra é presencial e também remota. Intitulada “Paixões mitológicas”, ela junta seis pinturas essenciais para a compreensão do Renascimento na chamada “escola veneziana”. Essas obras são conhecidas como “poesia” e a elas Ticiano se dedicou de corpo, alma e pincéis no período que vai de 1551 a 1562. Os trabalhos, de incrível delicadeza com a humanidade e transmitindo um jogo de luz maravilhoso, narram o amor, a luxúria e aquilo que todo artista, seja qual for o seu ramo de manifestação das emoções, sempre trabalhou – a morte. Esses temas são, em essência, fundamentais para a compreensão da existência humana.

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Assim como se pode afirmar que há duas compreensões de humanidade, uma antes e outra depois de Dante Alighieri, uma antes e outra depois de Friedrich Hegel, uma antes e outra depois da oitava sinfonia em mi bemol maior de Gustav Mahler, uma antes e outra depois de Fiódor Dostoiévski, pode-se igualmente dizer que tal fenômeno também se deu com Ticiano. Em exposição no Museu do Prado, templo de cultura artística, estão os quadros mais importantes do artista, entre os quais se incluem as pinturas “Danae”, “Vênus e Adonis”, “Perseu e Andrômeda”, “Diana e Acteón”, “Diana e Calisto” e “O rapto de Europa”. As inspirações vieram de “Metamorfoses”, de Ovídio: esse livro contém a sabedoria na qual não houve exímio artista plástico que não tenha se inspirado: “A sombra que vês veio contigo e contigo permanece; nada mais é que o teu próprio reflexo; se pudesses partir, ela se dissiparia; pena que não podes partir”. Ticiano inspirou-se, ainda, em “Os Amores de Júpiter”, de Antonio Allegri. “Em um momento tão excepcional como o que vivemos, a mostra é uma oportunidade única para admirar o acervo que Ticiano fez para Felipe II”, diz o diretor do Museu do Prado, Miguel Falomir. Ou seja: é o alento que os admiradores de arte e cultura tanto precisavam em um momento tão doentio para todo o mundo. A exposição ficará disponível até o dia 4 de julho. Aqueles que não puderem visitá-la no Museu do Prado terão a chance de vivenciar o talento de Ticiano por meio virtual – lembrando-se, é claro, da inevitável perda de sensibilidade entre o que é pregar os olhos em uma tela ou admirá-la mediatizada por um suporte digital. Em ambos os casos, pagam-se 2,5 euros.

Cores vivas, modulação policromática e pinceladas livres e fortes marcam as produções de Ticiano. Nem sempre, no entanto, o seu trabalho foi valorizado. Quando ainda era um pupilo em Veneza, cidade em que nasceu (supõe-se que entre 1473 e 1490, pois não há registros exatos de seu nascimento), fora chamado de “fedelho impertinente” pelo respeitado mosaicista da época, Gentille Bellini. Disse, ainda, que Ticiano deveria mudar de vocação. Como bem age um artista de alma, o pequeno Ticiano seguiu no caminho da arte, mas, depois desse episódio desconfortável, procurou outro preceptor – Giovani, irmão de Bellini. Os pincéis, as telas, as paletas de cores passaram, então, a ser mais que o ganha pão de Ticiano: iriam alçá-lo à fama. Com o falecimento de seu mentor, o “fedelho impertinente” tornou-se o pintor de maior prestígio na Europa. As suas telas retratam, sobretudo, paisagens, cenas bíblicas, alegorias e histórias da mitologia.