Darci Frigo, membro da Comissão Pastoral da Terra,recebe no Senado dos EUA prêmio de direitos humanosda Fundação Robert Kennedy

Demorou, mas a causa chegou ao Primeiro Mundo. No próximo dia 20, a luta pela democratização da terra no Brasil entrará na pauta do Senado americano pela porta da frente. O advogado catarinense Darci Frigo, membro da Comissão Pastoral da Terra, receberá em Washington o Prêmio Robert F. Kennedy depois de ter sido eleito – entre 30 indicações de todo o mundo – a pessoa que mais se destacou na defesa dos direitos humanos. Pela primeira vez, um brasileiro é condecorado pelo instituto da família Kennedy, uma das mais importantes organizações de direitos humanos do planeta. A conquista representa um empurrão e tanto na busca de soluções para os problemas agrários do País. Desde 1984, quando a premiação teve início, a homenagem vem garantindo repercussão internacional às causas escolhidas. Neste ano, será a vez de temas como trabalho escravo, grileiros e violência no campo fazerem parte da cerimônia. Há 15 anos o advogado se dedica à defesa dos trabalhadores sem-terra e sem direitos. Darci Frigo, 39 anos, soube da notícia por Kerry Kennedy Cuomo, filha do senador assassinado em 1968 e sobrinha do presidente John Kennedy. Por telefone, Kerry elogiou seu engajamento nas lutas populares – bandeira que o advogado carrega desde os tempos de militância na Pastoral da Terra da Igreja Católica. “Só acreditei que era ela quando minha secretária passou a ligação”, contou a ISTOÉ antes de embarcar para os Estados Unidos no domingo 11. Na viagem, também estão agendados encontros no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, na Comissão de Direitos Humanos do Senado, além de audiências com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Filho de pequenos agricultores de Capinzal (SC), Darci acumula uma enorme vivência na luta contra a repressão policial, mas não controla as lágrimas quando lembra de amigos que viraram vítimas. Já foi ameaçado de morte, preso e impedido de exercer sua profissão por se envolver em conflitos com a polícia nas ações de despejo. Hoje mora em Curitiba. De lá, coordena a Rede Nacional de Advogados Populares – grupo de profissionais, criado por ele, que defende aqueles que não podem pagar assessoria jurídica e de onde sairão os futuros Darcis Frigo.

ISTOÉ

No Brasil de hoje, qual o papel de advogados como o sr.?

Darci Frigo

Historicamente, tudo o que foi considerado mínimo para a sociedade é visto como grande conquista no campo. O salário mínimo na cidade é sempre o ganho máximo no meio rural. Toda vez que acontece a degradação das relações de trabalho no País, os primeiros a ser atingidos são os trabalhadores do campo. Desse modo, o trabalho do advogado é extremamente importante. Muitas vezes, nós nem visamos uma sentença final favorável, mas sim o tempo ganho para negociar com o dono da terra. Numa ação de reintegração de posse, por exemplo, esse tempo pode significar o prazo que os trabalhadores têm para se livrarem do conflito armado. O Brasil tem uma carência enorme de centenas e centenas de defensores dos direitos humanos no campo. São cerca de 100 advogados populares na rede de profissionais que estamos organizando para cuidar de quatro milhões e meio de famílias sem direito à terra. É muito pouco.

ISTOÉ

O que é mais difícil nesse trabalho?

Darci Frigo

A impunidade é uma grande dificuldade. Via de regra, os assassinatos e as ameaças ficam impunes. O soldado que assassinou o Antônio Tavares Pereira na BR 277, em Curitiba, no dia 2 de maio de 2000, foi absolvido na Justiça. Ele era o dono da arma e confessou a autoria da ação, mas a Justiça entendeu que o policial estava no cumprimento do dever legal. Existem inquéritos no Paraná de 1993 que até hoje não foram concluídos. Há exceções, como a que recentemente aconteceu no Pará. Lá houve uma condenação. Mas demorou anos e anos.

ISTOÉ

O sr. já foi ameaçado?

Darci Frigo

 Sim. Em novembro de 1999, uma nota oficial do governo do Paraná divulgou que eu fui o responsável por uma lesão corporal grave num policial durante uma ação de despejo. Isso é uma forma de expor minha vida para o conjunto da tropa. Qualquer soldado poderia vingar aquela agressão que eu nunca cometi. O próprio governador depois reconheceu que eu não tive nenhuma participação. A partir daí, comecei a receber os telefonemas. Eles diziam que iriam quebrar as minhas pernas. Se eu saísse de casa, não voltaria mais. Eles fariam o trabalho completo. O maior temor, no entanto, é com a nossa família. Eles agem de forma sutil ou, às vezes, escancarada, ao colocar em risco quem defende os direitos humanos.

ISTOÉ

Mas esse cenário não melhorou em relação à década passada?

Darci Frigo

 

Nós temos um quadro de violência no campo que vem decrescendo em relação à década de 80. Com o surgimento de organizações nacionais, o problema agrário foi criando visibilidade e a sociedade passou a se preocupar um pouco mais com a questão da terra. De 50 assassinatos por ano, nós chegamos a 20 mortes no final da década de 90, sendo que, neste ano, houve 23 assassinatos. Mas as formas de repressão ainda são fortes. O que ocorreu foi uma mudança no perfil da violência.

ISTOÉ

Como assim?

Darci Frigo

O componente principal dessa mudança é a forma como esses assassinatos estão sendo praticados: por grupos privados ou pistoleiros contratados. Na verdade, a repressão tem um movimento pendular. Quando o governo federal toma medidas mais duras, os Estados e as polícias locais se sentem muito mais à vontade para se associar às milícias privadas e reprimir os movimentos sociais. O governo federal é o parâmetro tanto para coibir a violência quanto para permitir a repressão.

ISTOÉ

Como o sr. avalia as medidas legais adotadas pelo governo?

Darci Frigo

 A violação dos direitos à liberdade é a saída que o governo federal tem adotado quando acha que a repressão física vai lhe custar muito caro. Centenas de trabalhadores são presos para depois se dizer qual foi a acusação. São usados tipos penais que antes você só aplicava em criminosos. É o caso da formação de quadrilha. Como é possível aplicar a formação de quadrilha contra movimento social? Isso vale para criminoso.

ISTOÉ

E o que vale para os manifestantes numa ocupação?

Darci Frigo

Os trabalhadores não querem o prédio público que ocupam. Querem a política pública. No ano 2000, nós tivemos quase a reedição de atos institucionais da ditadura. O governo usou medidas provisórias para impedir que áreas ocupadas fossem desapropriadas e criou uma divisão específica na Polícia Federal para cuidar dos conflitos agrários. No Paraná a ordem é: toda vez que houver ocupação de prédio público tem de entrar com pedido de reintegração de posse. Eu cito o Paraná porque não houve nenhum outro Estado que tenha tido tantas prisões. Nos últimos sete anos, foram 489. Nem em Pernambuco ou no Pará, que têm conflitos históricos, esses números são assim.

ISTOÉ

Há quatro anos, o líder do MST, João Pedro Stédile, disse que o movimento fazia a política do pau e prosa. O que vem agora?

Darci Frigo

 A reforma agrária brasileira vive um momento crucial. As medidas que deveriam ter sido adotadas, o cadastramento nos correios, a promessa de assentamentos, tudo isso criou uma falsa expectativa em milhares de trabalhadores. O governo faz isso exatamente para esvaziar a pressão do campo, enfraquecer os movimentos. É como se ele dissesse que ninguém precisa mais fazer acampamento, pois só o fato de preencher um formulário já garantiria a terra. Isso está resultando numa grande frustração. Nesse final de mandato, esse comportamento só está reforçando a organização dos trabalhadores. Vão levar novamente a questão agrária para a pauta nacional. Mas desta vez com mais força. Os trabalhadores rurais sofrem nessa mesma panela de pressão, junto com professores universitários e os servidores federais e estaduais.

ISTOÉ

O governo tem dito que os movimentos rurais não negociam.
 

Darci Frigo

 Dizer isso é uma das maquiagens mais evidentes da reforma agrária brasileira. Veja o que ocorreu nesses últimos dias. Os trabalhadores permaneceram por mais de dois meses em Brasília para negociar crédito e não foram atendidos. Já a bancada ruralista conseguiu o que queria em apenas uma reunião com o governo, sem precisar mover uma palha de mobilização. O setor ruralístico que é ajudado é parasitário. Ele coloca a sociedade a seus pés na hora que cobra o dinheiro para a desapropriação, ou quando consegue ganhar isenção das dívidas, pois não aplicou como devia a verba pública que recebeu. Já o pequeno agricultor até pode ser recebido, e isso acontece muitas vezes. A diferença é que a solução fica só no papel.

ISTOÉ

O governo tem dito que os movimentos rurais não negociam.
 

Darci Frigo

 Dizer isso é uma das maquiagens mais evidentes da reforma agrária brasileira. Veja o que ocorreu nesses últimos dias. Os trabalhadores permaneceram por mais de dois meses em Brasília para negociar crédito e não foram atendidos. Já a bancada ruralista conseguiu o que queria em apenas uma reunião com o governo, sem precisar mover uma palha de mobilização. O setor ruralístico que é ajudado é parasitário. Ele coloca a sociedade a seus pés na hora que cobra o dinheiro para a desapropriação, ou quando consegue ganhar isenção das dívidas, pois não aplicou como devia a verba pública que recebeu. Já o pequeno agricultor até pode ser recebido, e isso acontece muitas vezes. A diferença é que a solução fica só no papel.

ISTOÉ

Quais as principais falhas no modelo de reforma agrária adotado?

Darci Frigo

 O modelo que está aí gera mais êxodo do que fixação dos trabalhadores no campo. Falta crédito. Sem tecnologia adequada, não há possibilidade de o pequeno competir com a grande agricultura brasileira, que já se capitalizou em função de crédito obtido em outros tempos. E tem ainda a entrada das multinacionais, que exigem uma sofisticação tecnológica excluindo milhares de trabalhadores.

ISTOÉ

O Banco da Terra não garante crédito?

Darci Frigo

 A modalidade adotada com o Banco da Terra não vai ao encontro dos mandamentos constitucionais. Ele funciona nos casos de compra de uma área que é disponibilizada por qualquer proprietário de terra. Há áreas, inclusive, menores que o permitido para a desapropriação. O governo coloca um financiamento no Banco do Brasil para o proprietário receber à vista, enquanto o pequeno produtor acumula uma dívida de 12 a 15 anos. Numa reforma agrária correta, as terras disponibilizadas são aquelas que não cumprem uma função social. Além disso, o governo tem de lembrar que, ao entrar no financiamento, o produtor compromete uma renda que, na maioria das vezes, já é insuficiente para a própria subsistência.

ISTOÉ

 Existe alguma iniciativa na área rural em que o governo FHC tenha acertado?

Darci Frigo

 Uma medida importante foi a criação do grupo móvel para combater o trabalho escravo. Só que, infelizmente, o Malan (ministro da Fazenda), que é um tecnocrata e não tem sensibilidade humana, não dá recursos suficientes para o programa. Ele não percebe a importância desse grupo e o mantém numa atuação fragilizada. O trabalho escravo vem crescendo cada vez mais. Nós tivemos no ano passado 465 vítimas e este ano já são 1.812 pessoas, sendo 995 somente no Pará.

ISTOÉ

E se o sr. fosse o ministro, o que faria?

Darci Frigo

A primeira coisa seria estabelecer uma interlocução verdadeira com os movimentos sociais, e deles com a sociedade brasileira. É preciso que o Estado retome as terras que foram griladas. Também reforçaria um projeto no Congresso que estabelece um limite máximo para a propriedade da terra. A terra precisa ter uma destinação social. Todas as propriedades onde houvesse trabalho escravo seriam confiscadas e dadas como prêmio aos trabalhadores que perderam a sua liberdade em busca de dignidade para as suas famílias, que muitas vezes estão longe ou eles nem voltam a ver. E faria uma reforma agrária que de forma alguma se pareceria com o processo implantado hoje no País.

ISTOÉ

Esse é o discurso que o sr. vai levar para o Senado dos Estados Unidos?

Darci Frigo

 Sim, nós vamos deixar bem claro que para haver paz no campo e democracia duradoura, tanto no Brasil quanto nos outros países onde a maioria das pessoas vive na exclusão, é preciso haver maior distribuição de renda. Vou dizer que temos de enfrentar o problema da desigualdade entre os países ricos e pobres, e os Estados Unidos têm um papel fundamental nesse sentido. É preciso que os países ricos sentem à mesa para discutir os graves problemas do Terceiro Mundo, dos que precisam de terra, de trabalho, de renda para poder ter uma vida digna nas próximas décadas. Esse é o caminho para a gente ter novos marcos de uma paz duradoura.

ISTOÉ

Não é incoerente o sr. receber um prêmio do mesmo país que pauta o modelo de desenvolvimento do governo FHC?

Darci Frigo

Não. Em qualquer país do mundo há sempre pessoas e instituições que estão abertas aos direitos humanos, à democracia. São questões éticas universais. É importante que a família Kennedy, com toda a sua tradição nessa luta, reconheça que o problema agrário brasileiro merece atenção internacional. Mais do nunca, esse é o momento de todos dizerem, principalmente aos países ricos, que a estratégia que eles apoiaram até hoje, o modelo neoliberal, só gera mais exclusão e mais insegurança a médio e longo prazos. A curto prazo já gerou e isso vai se manter. O melhor caminho é nós lutarmos para haver maior igualdade entre as pessoas do mundo.

ISTOÉ

A quem o sr. dedicará esse prêmio?

Darci Frigo

 A todos os que já derramaram seu sangue pela causa da liberdade, pela terra no Brasil ou àqueles de quem a liberdade foi retirada através da prisão.

ISTOÉ

A alguém especial?

Darci Frigo

 Às crianças que foram retiradas das barracas de madrugada, vendo armas apontadas na cabeça de seus pais, sob as luzes dos carros de polícia e o latido dos cachorros. Sobretudo, dedico-o à dona Lúcia Mainko (faz uma pausa e enxuga os olhos). Ela é a viúva do Teixeirinha (Diniz Bento da Silva, líder do MST brutalmente assassinado em 1993 no Paraná). Estava a seu lado quando o marido dela foi morto.