O cientista catalão Manuel Castells prevê que o homem colecionará células para repor órgãos e que as cidades serão aglomerados de guetos

O sociólogo catalão Manuel Castells, 57 anos, investiga desde 1979 os efeitos da revolução da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade. Faz isso de um lugar privilegiado, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, a poucos quilômetros do Vale do Silício, meca mundial da tecnologia. O resultado de 20 anos de pesquisas sobre a sociedade digital é a trilogia A era da informação. O primeiro volume, A sociedade em rede (Paz e Terra, 620 págs., R$ 45), acaba de sair no Brasil. O livro foi comparado por Anthony Giddens, da London School of Economics, à obra do sociólogo alemão Max Weber, o maior do século XX. Não é para poucos. O interesse de Castells pelas novas tecnologias data de sua tese de doutorado, defendida em 1967 na Universidade de Paris, em Nanterre. Nessa época, lá lecionava o exilado político Fernando Henrique Cardoso. Os dois tornaram-se amigos. Em 1971, Castells deu aula por um mês em Campinas. Desde então, visitou o Brasil mais de dez vezes – a última, na semana passada, para lançar seu livro e rever o amigo presidente que mantém há 32 anos. Autor de mais de 20 livros, Castells prevê nesta entrevista exclusiva que, ao se completar o mapa do genoma humano em 2002, será possível fazer escaneamentos genéticos. E que a manipulação biotecnológica das formas de vida poderá ser devastadora.

ISTOÉ – Como o sr. vê o trabalho do sociólogo Fernando Henrique no poder?
Manuel Castells

 Creio que é igual ao de qualquer outro presidente. Mas com uma maior capacidade de reflexão sobre o que ocorre no mundo e na sociedade.
 

ISTOÉ – FHC tem a fama de ser um social-democrata. No entanto, no Brasil vivemos uma situação de desemprego jamais vista. Não é um contra-senso?
Manuel Castells

É difícil dizer algo concreto sobre o Brasil porque não o tenho acompanhado. Há seis anos a economia estava em boa parte arruinada. Era preciso harmonizá-la ao fluxo internacional de capitais, algo que não se faz em dois meses. Requer um esforço constante para estabelecer credibilidade junto ao sistema financeiro internacional. É isso o que ocorre no Brasil. É um processo duro, de ajuste, que requer controle de gastos públicos e acarreta recessão.
 

ISTOÉ – Há alternativa à globalização?
Manuel Castells

 Pela primeira vez na história, o mundo inteiro é capitalista. Não julgo isso algo positivo ou negativo, é uma constatação. Se é possível fazer a opção de não estar nesta economia globalizada, nenhum país o fez.
 

ISTOÉ – As crises na Ásia, Brasil, Rússia e Argentina mostraram que existe um descontrole total do capital especulativo. É possível disciplinar o capital?
Manuel Castells

 O capital é móvel. O trabalho não. Os capitais não são especulativos como se pensa. Não são especuladores sinistros se organizando para controlar o capital mundial. Os especuladores são os fundos de pensão e grandes investidores que podem transferir em frações de segundo milhões de dólares apertando um botão. Estamos atrelados a uma constante instabilidade financeira.
 

ISTOÉ – Não há como conter isso?
Manuel Castells

A instabilidade existe. É difícil regular o fluxo de capital, quanto pode entrar e sair. Há dois problemas: um técnico e um político. Tecnicamente é difícil controlar capitais quando o sistema financeiro está conectado às redes. A razão política pela qual não se pode controlar o fluxo de capitais é que os EUA e o FMI não querem. Por que os EUA fazem isso? Um mercado de capitais aberto e irrestrito é excelente para uma economia flexível, altamente tecnológica e competitiva como a americana.
 

ISTOÉ – Nos últimos meses, uma onda de escândalos atingiu o governo FHC. Qual é o papel dos meios de comunicação nisso?
Manuel Castells

 A política na era da informação é imediatista. Não quero dizer que os responsáveis sejam os meios de comunicação. Geralmente, eles recebem as informações. Não as geram, mas as filtram. São eles que as propagam, formando a opinião dos cidadãos. Cada vez mais a política se constrói não em torno de programas, porém em torno da credibilidade de pessoas. Em consequência disso, a luta política consiste em destruir a credibilidade do adversário. O que constato nestes últimos anos é que houve uma série de crises ligadas ao que se chama de política do escândalo.

ISTOÉ – O que é política de escândalo?
Manuel Castells

É uma estratégia das forças políticas de romper a credibilidade dos adversários diante de informações verdadeiras ou inteiramente manipuladas, que funcionam como uma goteira constante, uma informação atrás da outra. Foi o que aconteceu com Bill Clinton. Muitas informações sobre suas relações amorosas não tinham fundamento. Mas uma enxurrada delas acabou causando sérios danos a ele. Todos têm informações de estoque para se defender.
 

ISTOÉ – Qual é a consequência disso?
Manuel Castells

 A política de escândalo leva a uma instabilidade política crescente e a uma crise crescente da legitimidade da democracia. Se o escândalo for a informação mais visível que os eleitores têm dos políticos, ocorrerá uma generalização. Todos serão considerados igualmente ladrões ou obsessivos sexuais. A sociedade pode chegar à conclusão de que é melhor viver sem os políticos.
 

ISTOÉ – A privacidade sobrevive à era informacional?
Manuel Castells

Antigamente acreditávamos que surgiria um Grande Irmão, vigiando a todos. Hoje, os governantes é que são espionados. Como o príncipe Charles da Inglaterra e suas relações pós-modernas que incluíram um Tampax (risos). Sendo anarquista, tenho simpatia pela possibilidade de não haver segredos. Tecnicamente, não há mais a privacidade. Pode-se escutar tudo, gravar tudo, interferir em qualquer mensagem. Toda a vez que se usa um celular ou um PC ligado em rede, a gente se expõe na esfera pública.

ISTOÉ – Como agir nos casos de pedofilia e ensino de fabricação de bombas na Internet? Deve haver censura?
Manuel Castells

 A Internet é real como a própria vida. Expressa o que somos, uns bichos bastante daninhos. A rede expõe esse aspecto duplo da personalidade humana. Somos anjos e demônios. Enquanto houver pornógrafos, haverá pornografia. O preço de estar na rede é acessar qualquer tipo de conteúdo. Em 1997, tentou-se nos EUA controlar a pornografia infantil na Internet. A Suprema Corte rechaçou sob o argumento de que a Internet é o caos e os cidadãos têm direito constitucional ao caos (risos). A rede não pode ser controlada. É aí que entra a responsabilidade dos meios de comunicação. No meio de uma massa indiferenciada de informação, as pessoas vão acreditar na mais respeitável.
 

ISTOÉ – O excesso de informação leva ao fim da reflexão?
Manuel Castells

Não há excesso de informação. Quanto mais dados à disposição, maior a nossa capacidade de selecioná-los e usá-los. Há um descompasso entre a quantidade de informação na Web e a incapacidade das pessoas de absorvê-la.
 

ISTOÉ – Acesso à cultura faz diferença na sociedade informacional?
Manuel Castells

 Em uma sociedade na qual o poder e a riqueza das pessoas, empresas e países dependem da geração de informação, a educação é o elemento fundamental de progresso. Mas também de desigualdade e de exclusão social. Se há algo que precisa mudar, é o sistema educacional. A tecnologia faz com que, através da desigualdade de acesso à informação, se ampliem as diferenças sociais. Então, numa sociedade em que o mercado é fundamental na aplicação de recursos, sem uma ação política deliberada haverá aumento da desigualdade.
 

ISTOÉ – Como o Estado pode corrigir as desigualdades do mercado se o controle das informações está na mão das empresas?
Manuel Castells

 Boa parte das informações científica e cultural está nas universidades. Mas é certo que a informação tecnológica está cada vez mais nas empresas. As companhias do Vale do Silício estão contratando engenheiros de todo o mundo porque o Estado da Califórnia não é capaz de proporcionar mão-de-obra qualificada em número suficiente. Ao mesmo tempo, 20% dos californianos vivem em péssimas condições. Se tivessem acesso à educação, teriam tantas oportunidades quanto os engenheiros indianos, mexicanos e russos que chegam às centenas de milhares. A distribuição de riqueza passa pela educação, que é atributo do Estado.
 

ISTOÉ – O sr. considera a revolução tecnológica atual tão importante quanto a industrial do século XVIII. Não é uma avaliação prematura?
Manuel Castells

A revolução informacional começou nos anos 70, na Califórnia. Mas não está acabada. Está acelerando. Em pouco tempo os PCs serão coisa do passado. Ao mesmo tempo, desponta outra tecnologia ligada a essa revolução. É a engenharia genética, baseada no código hereditário, cujas informações podem ser programadas. Os avanços na biotecnologia também se aceleram, permitindo pela primeira vez a manipulação de formas de vida, muito perigosa para seres instáveis como nós. É por isso que digo que a revolução informacional não é igual, mas muito maior que a industrial. Ela afeta os dois elementos fundamentais da vida humana, a extensão de nossa mente e a capacidade de atuarmos sobre a vida.
 

ISTOÉ – Combater o bug do milênio e os vírus de computador gera bilhões de dólares. Interessa à indústria de tecnologia acabar com eles?
Manuel Castells

O famoso bug do milênio não é grande problema e nunca o foi. É uma extraordinária operação de marketing. As empresas têm interesse em gerar o pânico. Vão dizer que há uma nova onda de bugs a partir de 2001. Com respeito aos vírus, a quantidade deles é tamanha, assemelhando-se a uma corrida armamentista. Não há possibilidade de controle. Sua produção é maciça e descentralizada, obra de milhares de jovens.
 

ISTOÉ – Como vê a preocupação do Pentágono em relação aos hackers, os piratas da informática?
Manuel Castells

Eles estão muito preocupados. Mas ao mesmo tempo tentam participar dessa guerra eletrônica. Uma reportagem recente da revista Newsweek mostra que os militares americanos tentaram roubar dinheiro das contas do presidente sérvio Slobodan Milosevic via uma ação eletrônica. Pararam quando os banqueiros apelaram: "Por favor, parem de destruir a credibilidade do sistema bancário. Se não pudermos dar segurança a todos os criminosos do mundo, nossos bancos quebram" (risos).
 

ISTOÉ – Tecnologias como os computadores e a Internet foram criadas originalmente pelos militares. A guerra é necessária para o avanço tecnológico?
Manuel Castells

 A guerra nunca é necessária. Fiz um estudo sobre o colapso da URSS em que mostrei que o grande problema do sistema soviético foi a sua incapacidade de assimilar e desenvolver de forma produtiva a tecnologia de informação. Na URSS, a tecnologia era encerrada dentro do âmbito militar, com paranóia para não difundi-la ao conjunto da sociedade. Em contraposição, o Japão, que copiou tecnologia americana com objetivos comerciais, desenvolveu-se mais rapidamente do que a Europa e a URSS.
 

ISTOÉ – O advento da revolução biológica faz com que repensemos a ética?
Manuel Castells

 Sim. A biotecnologia possui ao mesmo tempo enormes potencial e carga destrutiva, pois nos permite transformar as espécies e nós mesmos. Não iremos clonar a torto e a direito. Creio que cada indivíduo terá caixas de reposição com células para usar na cultura de órgãos ao longo da vida. Mas as mutações biológicas, que seremos capazes de produzir tanto na nossa espécie quanto nos mundos animal e vegetal, poderão ser devastadoras. Ao se completar o mapa do genoma humano, em 2002, será possível fazer escaneamentos genéticos. As empresas de seguro de saúde irão cobrar muito mais das pessoas cujo escaneamento indicar a possibilidade de alguma doença grave. Em todo o mundo, estão sendo criados comitês de ética na biotecnologia, que agem no sentido de proibir esse desenvolvimento tecnológico. É uma batalha perdida. Toda a tecnologia inventada foi utilizada, incluindo a bomba nuclear.
 

ISTOÉ – Como controlar o desenvolvimento tecnológico?
Manuel Castells

 Criando mecanismos flexíveis para ajustar as novas tecnologias à medida que são criadas. A biotecnologia é altamente descentralizada. Pode ser desenvolvida em um pequeno laboratório num programa de doutorado de uma boa universidade. Seu controle não pode ser centralizado pelos governos. No caso da energia nuclear, isso era possível pois ninguém podia sair por aí com material radioativo no bolso. Ao contrário, hoje em dia pode-se andar com uma manipulação genética dentro da bolsa.
 

ISTOÉ – O semiólogo italiano Umberto Eco diz que vivemos o feudalismo da época contemporânea, uma nova idade média. O sr. acredita que as populações das cidades estejam se encastelando?
Manuel Castells

Ao mesmo tempo que as tecnologias de informação permitem a descentralização das atividades, vivemos a maior concentração urbana da história. Na América Latina, 75% da população vive em cidades. No Brasil, são 77%, concentrados em megacidades como São Paulo. Nestas metrópoles ocorre uma fragmentação enorme. Formam-se guetos. Acima de tudo, guetos dos ricos. O índice da concentração espacial é muito maior entre os ricos do que entre os pobres. Por isso é fundamental que se mantenham os espaços públicos para estabelecimento de relações humanas, sem as quais passaremos de uma cidade para uma concentração de tribos.
 

ISTOÉ – Mas em seu livro o sr. fala que a sociedade em rede favorece o agrupamento de pessoas das mesmas etnia, religião, movimentos sociais, etc. Isso não leva à formação do gueto?
Manuel Castells

 Com certeza. É a capacidade de obter informações que articula as pessoas. Ligar as pessoas física ou virtualmente cria a possibilidade de elas viverem em seu próprio gueto, optando por se relacionarem com quem quiser, deixando de lado a sociedade. É a ruptura do contrato em que está baseada a convivência social. Não é a tecnologia que produz isso, mas é ela que favorece essa situação. Se não tivermos instituições de convivência social, a nova tecnologia nos permitirá prescindir da sociedade para nos relacionarmos somente com gente como nós, dentro de guetos, através de comunidades eletrônicas. Será o fim da sociedade.