09/08/2002 - 10:00
Na Idade Média, uma investigação sobre os bastidores do Vaticano poderia causar a excomunhão ou até a morte em uma fogueira de madeira de lei. Apesar de a Igreja Católica não ter mais o poder de expor seus críticos à execração pública, este tipo de pesquisa não deixa de ter seus riscos. A ameaça de excomunhão, no entanto, não impede o historiador católico inglês John Cornwell de explorar o lado pecador da Igreja. Em seu primeiro livro, O papa de Hitler, ele aponta “evidências de que o papa Pio XII contribuiu efetivamente com a política de Adolf Hitler, o monstro de Berlim, apesar de afirmar que execrava o chefe nazista”. Dois anos depois, Cornwell lançou um novo livro, Quebra da fé (Editora Imago, R$ 40), em que critica as vulnerabilidades modernas da Igreja Católica, como sua intransigência dogmática sobre alguns temas, como o homossexualismo e sua aguda incapacidade de se comunicar com os jovens. Conservador e católico, Cornwell insiste em sua cruzada pela verdade do catolicismo. Em entrevista exclusiva a ISTOÉ, o historiador afirma que o papa João Paulo II “deixará a Igreja em pior estado do que aquele em que a recebeu do seu antecessor, Paulo VI”, em 1978. Afinal, é bom lembrar que a grande esperança daquela época, a eleição do papa João Paulo I, se esvaneceu 33 dias depois, quando ele morreu – para muitos, uma morte até hoje não inteiramente esclarecida. Cornwell ainda provoca o Vaticano ao defender que a Igreja Católica crie uma forma de ritual adequado para gays e lésbicas, já que considera inviável a aprovação do casamento homossexual.
Não. Mas deveria pelo menos considerar a questão e adotar uma forma de ritual adequado para pessoas do mesmo sexo, até para que estas pessoas possam assumir um compromisso mais consistente e mais de acordo com os princípios cristãos, mantendo seus vínculos com a Igreja. A maior dificuldade dentro das culturas gays é sustentar relações. Por isso mesmo, a Igreja deveria realizar uma forma de cerimônia que qualifique a fidelidade dentro de uma orientação, o que não comprometeria seus fundamentos.
Todas as indicações são de que o Vaticano não vá reconsiderar questões dogmáticas como o celibato ou o casamento de padres por causa dos escândalos de pedofilia envolvendo clérigos.
O papa e os bispos de todo o mundo não aceitam que o recrutamento e a formação de padres sejam falhos e que o problema fundamental seja uma questão de maturidade. Tenho a impressão de que eles vão acabar, logo ou em futuro próximo, promovendo uma caça às bruxas contra os padres homossexuais.
A posição da Igreja sobre a Aids é hoje um dos maiores escândalos do catolicismo. Na África, prelados de alto nível fazem pregações contra o uso de preservativos. Considerando-se a situação que se apresenta, os problemas sociopolíticos, as questões de saúde das nações africanas, essa posição não é adequada. É irracional.
É um problema que tem preocupado, mas sem que o Vaticano até agora tenha dado uma resposta adequada. O estudo de Fulton cita países como a Irlanda, Itália, Malta e até a Polônia, onde nasceu João Paulo II. O que ele mostra é que os jovens vivenciam a fé com uma ótica nova. Não ocorre aquela síndrome do pecado e da culpa, como ocorria nas gerações passadas. O catolicismo também não se torna, para os jovens, uma opção superficial. Eles querem assumir a religião de maneira mais consistente.
A Igreja, diante da realidade atual, dela própria, das sociedades modernas e dos jovens, devia culpar menos e abrir mais os seus próprios braços. A maior perda de fiéis da Igreja Católica ocorre entre os jovens. Eles pensam diferente de seus pais sobre religião. Eles mudaram seu entendimento sobre o sagrado e passam a se importar, a se preocupar e a dirigir suas atenções cada vez mais para os pobres, os desabrigados e também para os problemas do meio ambiente.
Em Quebra da fé procuro mostrar que os jovens assumem um catolicismo mais envolvido com o meio ambiente, com o amparo aos sem-teto, à paz no Terceiro Mundo, enfim, um compromisso com os excluídos, os injustamente aprisionados e de solidariedade com os torturados. No capítulo “Diluição da crença”, admito que há estímulo de bispos e párocos para a consciência religiosa e social. Mas admito que há também um fosso entre a posição da Igreja institucional sobre a moral pessoal e as opiniões e práticas da maioria dos jovens crentes.
O que falta à Igreja Católica é um grande sentimento de compaixão, especialmente no que diz respeito à moral sexual e aos problemas conjugais. Milhões de pessoas voltariam para a Igreja, e de uma forma mais vigorosa, se o papa, os cardeais, bispos, padres e cada pároco mostrassem preocupação com as pessoas que abandonaram o catolicismo. É preciso fazer algo para que elas retornem.
João Paulo II está muito interessado no que ele chama de sinceríssimo, que é a mistura da liturgia ortodoxa com as culturas locais. Certamente, deverá haver uma disciplina razoável para que os rituais e crenças da Igreja não se tornem irreconhecíveis.
Os pobres sempre deram dinheiro para a Igreja. A questão agora é se o dinheiro vai para a caridade ou se vai ser usado para pagar os processos envolvendo padres pedófilos.
Creio que, pela composição dos cardeais, o próximo papa será um italiano.
O fato de João Paulo II escolher a maioria dos bispos e cardeais indica uma tendência a uma posição de direita e, naturalmente, de um sucessor conservador. Afinal, o papa é que está escolhendo a linha ideológica daqueles que elegerão seu sucessor. Mas essa tendência de direita também ocorre porque a Opus Dei (entidade católica conservadora) é muito ativa neste pontificado e se infiltra em departamentos de grande influência no Vaticano, como a Congregação dos Bispos e a Congregação para a Causa dos Santos. Mas é preciso considerar ainda que os cardeais vão querer evitar a eleição de um direitista radical porque temem um futuro racha.
Ele poderia renunciar, mas sua saúde está tão debilitada que as pessoas poderiam questionar a validade de uma decisão desse tipo, o que poderia ser perigoso até para a unidade da Igreja.
Ela é feita em cubículos próximos à Capela Sistina. Acontece a portas fechadas, daí o nome “conclave”, que significa “com chave”. A reunião dos cardeais que formam o colégio eleitoral é precedida de mais de uma semana, em que eles meditam sobre os problemas da Igreja no mundo e se perguntam que tipo de homem corresponderá às necessidades do futuro. O processo eleitoral assume a forma de dois retiros, chefiados por sacerdotes de alta reputação moral.
Os cardeais rezam pela orientação na escolha de um papa apropriado. É nesta ocasião que surgem os grandes eleitores, grandes cardeais, mais ou menos cinco, que sondam os demais sobre seus candidatos favoritos e pressionam pelos seus. Atualmente, estão entre eles os cardeais Joseph Ratzinger, que supervisiona a ortodoxia da Igreja; Godfried Danneels, primaz da Bélgica; Camilo Ruini, presidente da Confederação dos Bispos Italianos; Angelo Sodano, secretário de Estado; e Dionigi Tettamanzi, arcebispo de Milão.
João Paulo II recomenda Pio XII pela sua sabedoria diplomática, o que sugere que ele acredita que aquele pontífice não teve nada do que se envergonhar durante a Segunda Guerra Mundial.
Aquela unidade e disciplina da Igreja tiveram seu preço. Neste último livro, Quebra da fé, lembro que, ao assinar uma concordata com Hitler, em 1933, o cardeal Pacelli, em nome de Pio XI, substituiu a reação dos católicos ao líder nazista por encontros de cúpula Berlim-Vaticano. Hitler usaria o próprio documento para separar o culto católico da ação política na Alemanha. Por isso, as estruturas e a moral interna da Igreja Católica começaram a mostrar sinais de fragmentação nos anos finais de Pio XII. O Concílio Vaticano II foi então aberto em 1962 por João XXIII, precisamente para rejeitar o modelo monolítico e centralizado de seu antecessor, dando preferência a uma comunidade humana e colegiada, descentralizada.
João Paulo II tinha claras posições contrárias ao
comunismo, contra o qual manteve debate antagônico no pós-guerra.
Ele também era veemente contra o capitalismo que se seguiu à queda do muro de Berlim. Não me parece que ele tenha uma visão clara sobre o socialismo. Como consequência disso, ele parece ter uma postura sociopolítica e econômica baseada mais na retórica do que em uma filosofia política sólida.
O papel da Igreja deve ser oferecer apoio espiritual e esperança para todas as pessoas, ricas ou pobres.
Eu acho que o papa diria que ele está mais secular,
menos religioso.
A posição de João Paulo II sobre a Teologia da Libertação mudou consideravelmente durante o seu papado. Primeiramente, ele se opunha a ela como se confrontava com o comunismo, mas depois passou a tolerá-la, talvez por reconhecer a coragem de alguns de seus expoentes. Mas o declínio da Teologia da Libertação talvez tenha resultado de sua fraqueza inerente, na medida em que era uma teoria importada da Europa que não atendia, de fato, às necessidades dos povos do Terceiro Mundo.
Quase nenhuma.
Ele se caracterizou por uma indiscutível integridade, extrema dedicação e por uma verdadeira santidade.
Ele também vai ser lembrado pelas perdas que ficaram evidentes com a redução da frequência nas missas, o sacerdócio em colapso, conflitos relacionados a questões morais. Mas sem dúvida João Paulo II ficará também na história como o papa que inspirou e manteve o Solidariedade, o movimento popular que libertou a Polônia do comunismo ateu, causando um processo que levou ao colapso do sistema soviético.
Uma tarefa básica do futuro papa será sanar as divisões da Igreja. Ele terá de se esforçar para amolecer as facções em conflito até que a Igreja possa chegar a um novo concílio, ou pelo menos a uma reunião dos bispos do mundo, que decida as atuais disputas, como afirmo em Quebra da fé.