03/08/2005 - 10:00
A crise é grave. Tão grave que derrubou até mesmo o imexível, o imbatível amigo do presidente Lula: o gaúcho Olívio Dutra, 64 anos, perdeu dias atrás a pasta das Cidades, jóia da coroa petista, na dura negociação em que o Planalto precisou entregar os anéis ao PP para não perder os dedos que lhe restam no Congresso. Bancário, formado em letras, Olívio é um dos fundadores do PT, junto com Lula, com quem dividiu um apartamento em Brasília, quando ambos eram deputados. Crítico do PT e até de atitudes recentes de Lula, Olívio rebate o consolo de ser o candidato do PT ao governo gaúcho em 2006: “Vou militar na base, em Porto Alegre, e fazer minhas leituras. Com gosto, não por obrigação.”
Desde que começou a ganhar pelo voto espaço na máquina do Estado, Congresso e Executivo, o PT reduziu a importância das instâncias de
base. A democracia interna passou a ser uma coisa meio pirotécnica. Como é o caso das prévias.
As prévias surgiram no PT depois que foram instituídas máquinas de parlamentares – das Câmaras Municipais ao Congresso. Os cargos e as estruturas dos gabinetes passaram a ter uma importância que se sobrepôs aos núcleos de base. Nós propúnhamos uma escola política permanente, onde professores e alunos não eram distinguidos pelos cargos ou funções.
Passaram a ser importantes as máquinas ligadas a figuras do partido,
a seus gabinetes, o que reduziu enormemente o debate político. Já não se discutia política, programa, conteúdo. Passou a contar quem era mais popular, mais bem relacionado com este ou aquele setor. E isso foi minando o PT, de fora para dentro, num processo que levou o partido a desvios.
A chegada ao poder trouxe para dentro do partido os costumes, hábitos e condutas da política mais tradicional. Houve acomodação e, aí, até um aproveitamento destas estruturas para desfrutar melhor da máquina do partido.
No início havia os núcleos de base, que tinham uma relação direta com
o PT e não eram ligados a mandatos de parlamentares. Eles não atrelavam os movimentos sociais, mas eram muito ligados à comunidade. Foram aos poucos sendo desativados, transformados em coletivos com nomes de figuras, detentores de aparelhos, de estrutura de poder. O PT não discutiu isso suficientemente.
Começamos a ter problemas com o crescimento não qualitativo, quando
se abriram filiações partidárias sem maiores critérios, para disputar espaços no partido, para disputar convenções. Isso se acirrou com as prévias.
Não, a idéia era o aparelhamento do partido, ter o PT sob controle de
uma corrente majoritária. Eu fui integrante de uma corrente originária, os 113
que fundaram o PT e que vinham dos movimentos sociais, sindicais, populares.
Nos articulamos porque havia gente que entendia que o PT era um partido tático.
A estratégia devia ser um projeto para o País, para a Nação.
Não concordo integralmente. Quem era, até há pouco, a direção nacionaldo PT? Não eram neófitos. Eram quadros caldeados nas grandes lutas democráticas do PT. Nos 25 anos de PT houve um processo rápido de acesso aos espaços institucionais, cargos, funções.
Retomo a discussão de estrutura, de processos, de definição política,
sem pessoalizar nem personalizar…
Nunca foi meu estilo fazer isso. Volto a dizer: houve um processo que
gerou distorções e flexibilizou condutas que eram da natureza e do rigor petista, possibilitando contaminação de procedimentos que se assemelharam aos de
outros partidos.
Claro, porque as instâncias coletivas do PT foram sendo aos poucos superadas pelos aparelhos dos cargos de poder, no Legislativo e no Executivo. O PT tem que repensar esta relação.
Eu discordo. Nossa situação é séria pela conduta de pessoas, pela articulação de campos políticos que esposaram uma conduta e uma visão
política baseada no pragmatismo e na flexibilização de relações com forças
que nada tinham a ver conosco. Por conta da necessidade de governabilidade, fizeram esta flexibilização e, nesta contingência, o PT se confundiu com o que há de mais tradicional e viciado na política brasileira. Isso é ação de um campo,
não de todos. Não preciso nominar ninguém.
Não, estou dizendo que a flexibilização e o pragmatismo abriram a guarda
do PT. Os que praticaram isso agiram como se a venalidade dos outros pudesse
ser usada em benefício do partido do governo. E, aí, houve condutas de venalidades, de desrespeito à coisa pública, de aproveitamento dos cargos, de tráfico de influências. E isso não tem nada a ver com a história do PT. É corrupção e roubalheira que nós sempre combatemos. Não podemos, de forma alguma, nos explicar dizendo que a maioria dos partidos já fazia. Isso não se justifica. Não vale
o argumento de que isso é meio que costumeiro…
Acho que o presidente Lula errou ao fazer este tipo de consideração, porque dá idéia de que nós nascemos para nos conduzir da mesma forma, no senso médio da política tradicional. Temos que condenar. Alegar isso significa que rebaixamos nossa conduta política, ao ficar num patamar em que nos assemelhamos aos outros. Não há como dizer que, como existe roubalheira e corrupção também nos outros partidos, dá para ficar mais tranqüilo. Coisa nenhuma! O PT não pode jamais ter este tipo de argumento! Milhares de pessoas, entre os mais de 800 mil filiados e outros milhares de simpatizantes, têm uma verdadeira ojeriza com este tipo de coisa. Não se contemporiza com a corrupção, com desmando, com desvio do dinheiro público. O PT não é isso! Essa é uma conduta que não perpassou o partido. Foi decisão de cúpula, não das instâncias partidárias. Sou integrante do diretório nacional e nunca ouvi falar nisso…
Não mostraram a estrutura das finanças nas reuniões do diretório.
Nunca, em nenhuma reunião do diretório. Devíamos ter cobrado mais.
Havia confiança muito grande nas pessoas. Nós, petistas, fomos perdendo um pouco desta coisa instigante, provocativa, de procurar saber bem das coisas. Isso não pode servir para acobertar erros. A maioria esmagadora dos petistas não veio para o PT para fazer carreira solo, buscar cargos, ascensão social e pessoal.
Não especulo, isso não ajuda. Para isso tem o Ministério Público,
a Justiça, a Polícia Federal…
Este cidadão a que tu te referes como fonte não é autoridade para
fazer qualquer coisa que incrimine outros para aliviar o seu envolvimento.
Toda e qualquer denúncia, desconfiança ou suposição – pode ser
a mais estapafúrdia – tem que ser averiguada. Não queiramos que, de repente,
um corrupto seja original só porque se declarou corrupto.
Não compactuo com isso. Um corrupto passou a ser herói
porque se assumiu como corrupto.
Acho que foi um erro crasso. Fui um dos que estranharam como é que se criou uma situação dessas para o presidente, deixando-o naquela saia-justa. Isso faz parte de uma forma de assessorar o presidente: não levavam nunca a Lula um quadro completo, com suas realidades e complexidades, com detalhes importantes.
Essa política de flexibilização, de alianças do centro para a direita, sob a alegação de que Lula não foi eleito com maioria e precisava de governabilidade, é errada. Poderíamos ter constituído maiorias eventuais, até pontuais, sobre projetos de interesse do partido e da Nação, e trabalhar sobre eles. Criar a idéia de maioria permanente num Congresso é ter que se submeter a uma chantagem constante, de interesses particulares, grupais, ocasionais. E isso nos levou ao despenhadeiro, a uma confusão pela qual estamos pagando um preço caríssimo.
Não sabia, assim como eu nunca soube. Não acompanho o cotidiano
do Planalto, mas em todas as ocasiões em que tive oportunidade de conversar
com Lula percebi, com o coração e a razão, que ele estava ignorando o processo, que nem eu conhecia.
Todos nós fomos traídos. Por esta conduta, por este processo que
nos levou a esta situação de crise.
Aí tem muito oportunismo, muito interesse em se aproveitar das circunstâncias, até para dizer que esteve perto do Lula, que tem acesso fácil ao presidente… Lula me contou que recebia pessoas, só ouvia, e no dia seguinte saíam na imprensa coisas como se ele as tivesse dito. E ele não tinha falado nada!
Não sabia de nada. Isso merece ser investigado, a fundo. Não é argumento para o PT dizer que os outros também tinham caixa 2. Já tivemos crises de crescimento, mas esta crise agora é de rebaixamento das bandeiras, do relaxamento das relações internas do partido com suas instâncias de deliberação coletiva.
Não acredito nisso. A conduta do companheiro Lula não se confundiu com
isso. Imagino como tem sido dolorido para
Lula viver esta situação.
Essa crise criou uma situação em que Lula não tinha como trazer para o governo
uma força social, que precisa dentro do Congresso, sem entregar as Cidades. Diante deste quadro, saí tranqüilo do Planalto, porque o presidente até o último dia estava entendendo que, junto com as Secretarias da Igualdade Racial e de Política para a Mulher, a pasta das Cidades era um espaço de conquista de nosso governo, que não devia ser mexido nem alterado. Mas, desta conversa até o dia seguinte, pela manhã, houve pressões e contrapressões das quais o presidente não pôde se desvencilhar. Lula sabe que o argumento para fazer a substituição vinha desta necessidade política: a de incorporar um campo do centro-direita, num governo mergulhado numa crise, que precisa de trânsito no Congresso para aprovar seus projetos.
Quem de nós não gostaria de fazer mais e melhor, de um jeito que
fosse marcante para o campo popular, progressista, democrático-popular.
Nosso governo, infelizmente, está prisioneiro de um conjunto de forças do
centro-conservador ao centro-direita.