A primeira informação veio, como sempre, da “Encyclopaedia Britannica”. Foi em meados da década de 1990. No tempo da internet por linha discada. Quando de Wikipedia nem se falava. E a “Britannica” disponível, datada de 1965, com 23 volumes encadernados em couro branco, virara trambolho para a nova geração que, em casa, começava a fazer pesquisa para o colégio ou a universidade.

A “Britannica” continua na estante. Aliás, nunca fi cou tanto tempo na estante, sem uso. Entra ano, sai ano, e ninguém se arrisca a dedilhar seu papel-bíblia, à cata de verbetes como, por exemplo, o do “computador”. Ou melhor, das “computing machines”, como diz a página 245 do 6º volume. Eram artefatos reservados aos laboratórios ou grandes corporações. Geralmente, para moer contas indigestas. Pareciam fadados a ser para sempre “instalações de grande porte, custando de algumas dezenas a muitas centenas de milhares de dólares”. Pechincha, nesse mercado, era engenhoca de dez mil dólares.

Não dava mais para deixar aquele manual de anacronismo ao alcance de adolescentes. E uma “Britannica” nova, último modelo, andava por volta dos 800 dólares. Mas a própria página dos editores na internet anunciava sua versão integral em CD, por 60 e poucos dólares. Por
uns trocados mensais, ganhava-se acesso por senha aos arquivos da “Britannica”, incluindo os anuários de atualização ainda no forno.

Veio o CD. Foi uma traição ao livro. E a cinco séculos de costumes lastreados nos tipos móveis de Gutenberg. Mas era uma traição induzida pela editora. E logo depois sairia aqui o primeiro “Aurélio” eletrônico. Tinha, sobre o dicionário original, o trunfo inigualável da “pesquisa inversa”. Escrevendo-se na lacuna de busca as palavras-chave de uma defi nição qualquer, lá ia o “Aurélio” procurar o verbete.

Era um recurso inédito, quase um brinquedo. Mas veio resolver problemas nem sequer imaginados por dicionários convencionais. Como a busca de palavras para “vento frio” trouxe à tona por acaso, do fundo das lendas amazônicas, uma tal de Cruviana. E para que serve a Cruviana? No caso, serviu para não fazer de bobo num garimpo de diamantes, na fronteira com a Guiana. Ali só se dormia em rede, armada ao relento, sob um pedaço de plástico. Na hora de instalar o hóspede na beira do mato, o anfi trião advertiu: “Cuidado, que de noite a Cruviana pode morder.” A que o forasteiro retrucou, como se não tivesse feito outra coisa na vida além de dormir ao ar livre nos cafundós de Roraima: “Vai esfriar?” Dito isso, adormeceu no aconchego de saber que o dono do garimpo jamais iria adivinhar que sua intimidade com a selva bruta vinha do “Aurélio”, instalado semanas antes em seu notebook. Quer dizer, seu laptop, que era mais ou menos a mesma coisa, mas ainda não se chamava, em bom português, notebook. Hoje cada vez mais livros se abrem primeiro no iPad e outros tabletes da vida. Papel, só na falta de edição virtual. E nenhum sinal de que o livro piscou para o rival foi tão claro quanto a estreia na Europa do librinno. Trata-se de um livro como os outros. Só que imita, no formato e até no jeito de empunhar, um tablete. Com ele, acaba a época em que os tabletes imitavam os livros tradicionais. E há librinnos em listas de best-sellers. São um perigo. 

Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista “Piauí”