A importância de Jung

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Carl Jung criou a ideia de consciência coletiva, desenvolveu o conceito dos arquétipos e indicou que a existência da espiritualidade não dependia da religião. Jung também ficou conhecido por elevar o sonho à categoria de manifestação principal do inconsciente do indivíduo. Para Freud, seu mentor, o sonho era uma entre várias manifestações do inconsciente

DEMÔNIOS Pensamentos de Jung: comer fígado de criança e viagens à morte

 

Na semana em que a morte de Sigmund Freud completa 70 anos, a divulgação de um livro secreto escrito pelo mais famoso discípulo do pai da psicanálise praticamente ofuscou a celebração. O suíço Carl Gustav Jung roubou a cena de seu desafeto – com quem cortou relações por divergência de ideias – mesmo morto há quase meio século. A obra, que está sendo chamada de "The Red Book" (O Livro Vermelho) devido à cor da capa, esteve guardada em um banco em Zurique, na Suíça, durante 23 anos.

Tanto cuidado por parte dos descendentes de Jung não é apenas zelo diante de uma herança rara. O texto revela um lado obscuro da mente do psiquiatra. É a história de um especialista em inconsciente tentando lidar com os demônios de seu próprio inconsciente. Depois de uma negociação de quase duas décadas com familiares de Jung, o anúncio de que o livro será publicado em inglês, em 7 de outubro, e o original estará em exposição nos próximos meses no Rubin Museum of Art, em Nova York, deixou os junguianos de todo o mundo em êxtase. O trabalho está sendo considerado o mais influente da história da psicologia.

A importância de Freud

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Sigmund Freud entrou para a história como o pai da psicanálise. Ele defendeu de forma apaixonada o reconhecimento científico da inconsciência. Era lá que, segundo ele, estavam abrigados os desejos reprimidos. E entre esses desejos nenhum sofria mais repressão que o sexual. Freud também criou técnicas como a interpretação de sonhos e a hipnose para acessar o inconsciente com o objetivo de tratar os desejos reprimidos

Mentor Jung cortou relações com Freud, seu mestre, por divergência de ideias

 

Escrito há quase 100 anos e com 205 páginas redigidas em alemão, o resultado beira o indigesto. Entre os delírios que rondavam o pensamento de Jung estão viagens que levavam à morte, a paixão por uma mulher que mais tarde ele descobre ser sua irmã, se ver esmagado por uma serpente gigante e comer o fígado de uma criança. Fantasias, é verdade, que podem fazer parte dos desejos mais proibidos de qualquer ser humano. Uma vez escancaradas, porém, chocam. No epílogo ele avisava: "Para o observador superficial parecerá uma loucura." Em outra passagem, expressa perturbação. "Acredito que estou completamente perdido. Estarei realmente louco? É tudo terrivelmente confuso."

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TESOURO O livro foi escrito há quase 100 anos e tem 205 páginas

Jung trabalhou no livro durante 16 anos. Até hoje, pouquíssimas pessoas tiveram acesso à obra. Sempre que alguém perguntava se era possível ler o trabalho recebia um sonoro não da família. Foi o analista americano Stephen Martin quem convenceu os parentes de Jung, num processo que começou em 1989. Ele é diretor da Philemon Foundation, instituição cuja missão é publicar a obra completa do psicanalista e manter viva sua memória. Martin gastou os últimos anos numa dedicação quase fanática na arrecadação de dinheiro para a tradução. Ele reconhece e entende o receio da família, mas acredita que se trata de um legado único para os seguidores de Jung. "Todos nós somos um pouco donos dessa obra", afirma.

A comunidade junguiana aguarda essa publicação desde a morte de seu mestre. "Haverá festas em Zurique, Londres e Nova York no dia do lançamento", diz Denise Gimenez Ramos, coordenadora do Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da Sociedade Brasileira de Psicologia. "Estou organizando uma aqui no Brasil." Ela diz que Jung é fundamental atualmente. Em 1959, no auge da Guerra Fria, quando o comunismo pasteurizava as individualidades, ele previu que viveríamos não em um mundo onde todos seriam apenas um número. Pelo contrário. "Disse que essa uniformização teria efeito inverso e que as pessoas passariam a lutar para ter e expor suas individualidades", conta Denise. Nada melhor do que o fenômeno dos sites de relacionamento como Orkut e Facebook para provar que Jung estava certo.

A teoria do inconsciente coletivo criada por ele afirma que o indivíduo nasce com um conhecimento de experiências já vividas pela espécie humana. Jung formulou esse conceito ao constatar que alguns de seus pacientes tinham alucinações com mitos que desconheciam. E ele também, como mostra o novo livro. Foi então que Jung desenvolveu a ideia dos arquétipos, elementos formadores das mitologias de um povo influenciadas por lendas das mais diversas culturas e épocas. Por exemplo, a crença de que existe um ser superior e onipotente é compartilhada pela maior parte das pessoas.

Assim como a figura do herói, hoje simbolizada pelos ídolos do esporte (e no passado pelos guerreiros que defendiam nações). Chegar a essa conclusão levou ao rompimento com Freud, que via a inconsciência como um calabouço dos desejos reprimidos de cada um de maneira individual, de acordo com experiências, e como uma patologia a ser tratada.

Para o psicoterapeuta Antônio Carlos Amador Pereira livros como esse, com relatos pessoais, geram repercussão e polêmica. "De maneira geral, porém, não mudam a prática psicanalítica", diz. Mesmo assim, é um testemunho impressionante de alguém que parecia ter o conhecimento total da mente dos pacientes – enquanto isso, sua própria imaginação era inconfessável. Ao confessá-la, ele incomoda justamente por nos lembrar que o absurdo faz parte do pensamento diário de todos nós.