16/07/2003 - 10:00
Em 1982, nos estertores da ditadura, a cúpula militar estava nervosa com alertas de sua inteligência sobre o aumento do tráfico de armas no País. Uma força-tarefa do Exército e da Polícia Federal desencadeou uma operação secreta, batizada de “Bengalão” – referência bem-humorada aos oficiais veteranos que esperava fisgar. Depois de alguns meses, 20 depósitos foram estourados
no Rio de Janeiro e uma quadrilha de “armeiros” foi presa com armas e munições proibidas. Até na sede do Para-Sar, tropa de elite da Aeronáutica, em Niterói, havia um paiol clandestino. O sucesso da operação tornou-se seu maior problema: os “armeiros”, soldados que cuidam de arsenais particulares, guardavam mercadorias para o “high society” do regime,
gente graúda como o ex-presidente Ernesto Geisel e o ex-ministro da Justiça Armando Falcão. O caso acabou abafado. “A Operação
Bengalão virou Bengalinha”, ironiza um dos investigadores. De lá para cá, nem Bengalinha.
Enquanto o governo federal discute com o Congresso se a arma é um mal a ser extirpado ou um mal necessário, que protege o cidadão, cada vez mais homicídios são cometidos com armas de fogo – seis em cada dez –, e a porteira para a entrada clandestina de pistolas, fuzis, submetralhadoras, granadas e bazucas no País vai sendo arrombada. Só no ano passado a polícia do Rio apreendeu 171 fuzis do “narcoexército”. O descontrole é tão alarmante que no dia 1º de julho uma granada argentina foi encontrada com meninos de rua no Leme, zona sul do Rio. Só não explodiu porque estava com defeito. O projeto do ex-ministro da Justiça Renan Calheiros que proíbe a venda de armas foi retirado do pacote de segurança examinado pelo Congresso. “O lobby da indústria de armas é poderoso”, disparou o senador Calheiros (PMDB-AL). O governo decidiu sugerir à comissão mista do Congresso que discute o assunto uma proposta que proíbe o porte, mas permite a posse de armas em residências. “Proibir simplesmente é coisa que já foi superada”, acredita o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Somadas as armas contrabandeadas e as legais, desviadas para a bandidagem, o Brasil vive um processo de transferência de seu arsenal para criminosos. São cinco milhões de armas registradas, contra três a quatro milhões de armas ilegais, segundo estimativas. Pior. As armas legais, em sua maioria, já não estão nas mãos de quem as registrou. A PF, a quem cabe controlar armas com calibre legal (revólveres e pistolas até 38), nem sabe os números do Rio. Oficialmente, são 157 mil contra 1,3 milhão em São Paulo. Um número risível, mesmo em um Estado no qual foram vendidas, no ano passado, apenas três armas pelas vias legais. O alto custo do porte – R$ 1.100, sem contar a arma – deveria tornar as vendas mais rigorosas. No entanto, o que se viu foi transferência dos negócios para a clandestinidade. Enquanto isso, as apreensões de armas ilegais aumentam 15% ao ano.
A corrida armamentista entre as narcofacções faz prosperar o negócio.
O depósito de armas apreendidas pela polícia carioca guarda um show room com 65 mil peças, de pistolas Glock com fibra de carbono a fuzis
Sig com rajadas de fogo seletivo – até 20 tiros a cada aperto no gatilho. No domingo 6, no Monumento dos Pracinhas, centro do Rio, o governo destruiu quatro mil dessas armas. Duzentos fuzis foram queimados. “Vivemos o boom dos fuzis”, relata Luis Carlos dos Santos, diretor da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos. Estima-se que existam
nas favelas do Rio até 60 mil armas. Muitas são alugadas para assaltantes. “O tráfico se arma para sinalizar seu potencial bélico.
Isso produziu um volume de compra maior do que suas necessidades operacionais”, explica o secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares. “O combate ao tráfico de armas é minha prioridade”, afirma Paulo Lacerda, diretor da PF, que criou uma coordenação nacional de combate ao contrabando de armas e iniciou uma grande investigação envolvendo fabricantes, policiais e militares de diferentes bandeiras.
É um vespeiro. “Quando começarmos a cutucar, vai aparecer gente importante”, acredita Lacerda.
Mercosul – A PF investiga uma espécie de Mercosul do crime que abastece quadrilhas de traficantes. Segundo a Polícia Civil do Rio, 85% das armas de uso restrito que chegam no Estado têm como última escala o Paraguai – que não fabrica armas – e os 15% restantes, os Estados Unidos. “O Paraguai não é apenas passagem, é um entreposto de armas”, aponta Lacerda. O dossiê Ação Estratégica contra o Crime Organizado, da Polícia Civil, revela
que oito em cada dez armas contrabandeadas para o Rio foram
adquiridas antes, em negócios legais, por duas “armerias” paraguaias,
a Agrícola San Felipe e a Perfecta Sami, ambas sediadas na capital, Assunção. “O Paraguai vive uma séria desordem institucional”, alerta
o delegado Carlos Antônio de Oliveira, diretor da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos.
No Mercosul do crime, a Argentina ganhou destaque. As “encomendas” variam de fuzis automáticos FAL a granadas FMK2. Entre 1995 e 2003, a polícia apreendeu com traficantes do Rio 338 dessas granadas – 75 só nos três primeiros meses deste ano. Um dossiê reservado obtido por ISTOÉ, produzido por oficiais ligados à Fabricaciones Militares de la Argentina, a maior fornecedora daquele país, mostra que armas portenhas encontradas com traficantes brasileiros pertenciam a órgãos de segurança. Submetralhadoras argentinas que terminaram nos morros do Rio tinham como ex-proprietários o Serviço Penitenciário Federal, que cuida da segurança dos presídios argentinos, e polícias de províncias. “Isso confirma o desvio direto de armas restritas argentinas para traficantes brasileiros”, afirma Pablo Dreyfus, oficial da reserva da Marinha argentina, que presta assessoria à ONG Viva Rio. “É o lado sombrio do Mercosul”, diz.
Sem controle – Do lado de cá da Bacia do Prata, o Exército brasileiro, que deveria cuidar da circulação de armas de calibre proibido, não consegue controlar seus próprios paióis. Armamentos restritos do Exército encontrados com traficantes levaram a PF a investigar sargentos, cabos e soldados que podem ter sido recrutados e aliciados pelo tráfico. A Procuradoria da Justiça Militar do Rio de Janeiro também está levantando os responsáveis por roubos e desvios de material bélico. O último foi em 15 de junho, quando desapareceram 1.200 cartuchos de fuzil calibre 7,62 e uma centena de cartuchos de pistola 9 mm de um Batalhão em São Gonçalo, vizinho a morros dominados por traficantes. O depósito nem sequer foi arrombado. Há um ano, dois lança-rojões M72-A2, desaparecidos de um depósito da Marinha, apareceram no Morro do Adeus. Seis meses depois, foram achados seis AT-4 no Jacarezinho e na Cidade de Deus, zona oeste.
O Exército informa que o envolvimento de militares é apenas “pontual” e que, nos últimos oito anos, foram roubadas 164 armas de seus arsenais, sendo 106 delas recuperadas. “Nossos soldados estão entregues à influência do crime organizado”, discorda o general da reserva Carlos Eduardo Jansen, que coordenou a segurança da conferência Rio-92. “O próximo passo será encontrar quadrilhas envolvendo oficiais”, atesta uma fonte do governo. Uma ponta desse iceberg emergiu em agosto de 1995, quando a PF prendeu o coronel da Aeronáutica Latino da Silva Fontes junto com uma carga de 30 mil balas para fuzis de calibres 7,62 e 5,56.
Made in Brazil – “Fuzis e metralhadoras são para defender o território. Mas quem assalta e mata na esquina usa um revólver na cintura”, diferencia o sociólogo Antônio Rangel, coordenador do Projeto de Desarmamento do Viva Rio, que examinou 700 mil arquivos da Polícia Civil do Rio. Resultado: das 224.584 armas ilegais apreendidas no Estado entre 1950 e 2001, 84,5% são pistolas e revólveres. O que impressiona é que 80% são made in Brazil – 87% fabricadas por uma mesma empresa, o grupo Taurus/Rossi, a maior indústria de armas do País. Também há armas restritas. Entre as 1.556 armas proibidas estão submetralhadoras URU e MT-12, esta última produzida pela Taurus, e fuzis e submetralhadoras INA, da Imbel – Indústria de Material Bélico do Brasil, subordinada ao Ministério da Defesa.
A PF e a Polícia Civil do Rio investigam vendas “triangulares” de armamentos brasileiros – uma forma de contornar um embargo voluntário de vendas de armas para o Paraguai. “Elas saem legalmente do Brasil via Miami, Argentina ou outro país e depois voltam ilegalmente pelo Paraguai”, explica o delegado Luis Carlos dos Santos. Não há sinais de envolvimento das fábricas brasileiras, mas a polícia critica os “mecanismos frouxos” de controle das vendas. A Imbel, que produz fuzis, submetralhadoras e até foguetes SBAT-37 e SBAT-70, tem na sua lista de compradores a argentina America Shooters e a americana Pacific Armament Corp. Para quem eles revendem? Ninguém sabe. A Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), autoproclamada “Arsenal Nacional das Forças Armadas”, vê parte de sua produção parar nas mãos de bandidos.
Em 2000, parte de um lote de balas calibre 5,56 para fuzis foi apreendida em favelas. Dois anos antes, a polícia encontrou munição da CBC no
meio de uma carga de fuzis HK-47 comprados pelo Exército paraguaio
e desviados para traficantes. Enquanto a Imbel tem representantes
da Argentina à Indonésia, a Taurus criou a Taurus International Manufactoring, sediada em Miami. Relatório da ONG Violence Policy
Center informa que a Taurus na Flórida produziu, entre 1990
e 2000, 143.821 pistolas.
Farra – Na fronteira entre São Paulo e Rio, cidades como Piquete, com 15 mil habitantes, abrigam fábricas de armas. Em abril, três homens invadiram a Target Engenharia e levaram 300 granadas da Marinha, a maior parte recuperada. “Essa região é um supermercado para traficantes”, afirma o delegado José Willy Giáconi Júnior. O diretor financeiro da Imbel, coronel Alfredo de Araújo, informou que é exigido de seus compradores o end user, uma garantia de que a arma não será reexportada. “Quanto ao uso das armas, a responsabilidade é do nosso cliente”, reconhece. ISTOÉ procurou os presidentes da Taurus, em Porto Alegre, e da CBC, em São Paulo, mas não obteve resposta. Um retrato da farra das armas foi exibido no dia 1º de julho, quando o juiz Francisco das Chagas Ferreira Chaves, de Volta Redonda (RJ), e oito funcionários do fórum foram detidos na rodovia Anhanguera com duas pistolas, uma espingarda e quatro bombas de fabricação caseira, além de muita munição. Nenhum porte ou registro foi apresentado. À polícia o juiz alegou que o grupo vinha de uma pescaria.
Quem também procura a direção da Taurus sem sucesso é Marcelo Yuka, 37 anos, ex-baterista do Rappa, que defende o fim da fabricação de armas. Repete o gesto do americano Michael Moore, que em seu documentário Tiros em Columbine levou dois sobreviventes do massacre em uma escola para devolver as balas alojadas no corpo a uma loja do Wal-Mart, onde elas foram compradas. “Em vez de fazer passeatas contra a violência, a sociedade deveria exigir o fim do
comércio de armas, que é a origem de toda essa violência”, prega
Yuka, tetraplégico desde que foi atingido por nove tiros, em novembro
de 2000, ao ajudar uma mulher assaltada. Na “Columbine” brasileira,
a tarefa não será fácil.
Outra versão |
Em agosto de 1995, o coronel da Aeronáutica Latino da Silva Fontes foi preso acusado de tráfico de armas. Ele e um portuário, Rubenil Thomaz da Silva, estavam desembarcando um carregamento de 30 mil balas para fuzis na Penha, zona norte do Rio. Rubenil morreu, segundo a polícia, ao reagir à prisão. O coronel foi condenado a oito anos de reclusão, cumpriu três e meio em prisão militar e vive em liberdade condicional. Hoje, com 72 anos, contou uma história diferente: ISTOÉ – Como o sr. vive hoje? ISTOÉ – Por que o sr. foi preso? ISTOÉ – O sr. está dizendo que entrou de “gaiato”? |
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