Descendente de índios e filho de um mineiro empregado numa companhia de mineração inglesa, o fotógrafo peruano Martín Chambi, um dos pioneiros da fotografia latino-americana, sabia o peso que a exploração do ouro representava para seu povo, retratado por ele sempre com altivez e dignidade. Tanto é assim que, ao morrer no dia 13 de dezembro de 1973, aos 82 anos, confiou à sua filha Julia, também fotógrafa, um acervo de mais de 30 mil negativos, grande parte em placas de vidro, dizendo que ela teria ali “uma mina” e saberia muito bem como explorá-la. É do Arquivo Martín Chambi, em Cuzco, no Peru, que vêm as 50 belíssimas fotos da exposição Martín Chambi – poeta da luz, cartaz da Pinacoteca do Estado, em São Paulo, a partir do sábado 5. A amostragem, com imagens feitas entre 1922 e 1944, pode parecer pequena em comparação ao tesouro guardado nas alturas dos Andes. Mas é suficiente para fazer os olhos reluzirem. Além de ícones da produção de Chambi, como a Panorâmica de Machu Picchu, de 1925, e O gigante de Paruro, do mesmo ano, a mostra traz, segundo o curador Diógenes Moura, pelo menos 30 fotos inéditas. Também é a primeira vez que todo o conjunto – seguindo o processo de revelação denominado banho de ouro velho, que reproduz com exatidão a tonalidade sépia-dourada imaginada pelo artista – é exibido na América Latina.

Mais impressionante que sua técnica depurada, no entanto, é a variedade de temas exibida em seus ensaios, como afirma o escritor peruano Mario Vargas Llosa, um entusiasta do trabalho de seu conterrâneo. “Não houve esquina de Cuzco que Chambi não tenha apropriado ou imortalizado. Suas imagens nos colocam no coração do feudalismo das montanhas, nas haciendas dos grandes proprietários de terra com seus servos e concubinas, na procissão colonial de multidões contritas e bêbadas…”, escreveu ele. É assim, devido ao rigor de sua documentação, que a restauração das ruínas de Cuzco se tornou possível, depois do terremoto de 1950. Antes de voltar suas atenções para o sítio histórico, porém, Chambi iniciou a carreira como retratista. Seu estúdio na Calle Marqués 69 era
endereço da elite local, que também o contratava para registrar festas
e casamentos. Mas sempre existe uma ponta de ironia em trabalhos
do gênero. Uma prova é Noiva na mansão Montes, de 1930, que enquadra no canto direito da imagem, numa área de sombra, a mãe
-de-leite da jovem de véu e grinalda. Ainda mais desconfortante é Matrimônio do Senhor Pareja, de 1936, que deixa ver, por trás do
telão de flores ao fundo, um suposto empregado espreitando o evento.
O mesmo telão irá aparecer em inúmeros retratos, entre eles Boxeadores no estúdio, de 1938.

Antropologia – Além da aguçada percepção das contradições sociais do Peru, as fotos de Chambi cativam pelo valor antropológico. “Minha raça fala pelas minhas fotografias”, dizia. O melhor exemplo é a citada O gigante de Paruro, imagem que se iguala em força às telas do pintor Albert Eckout sobre as etnias formadoras do povo brasileiro. Aquele homem em andrajos de lã, transformado em símbolo pelas lentes do artista, media 2,10 m e pesava 150 kg. Tinha 52 anos quando foi fotografado. Chambi ainda
levou para o estúdio uma infinidade de índios, vistos sem exotismo e sem o viés do colonizado. “O mundo de Chambi é sempre belo, um mundo no qual as formas de desamparo, discriminação e vassalagem foram humanizadas e dignificadas pela limpeza da visão e pela elegância do tratamento”, comenta Vargas Llosa. Não poderia haver melhor ilustração deste apuro que o Auto-retrato nas alturas de Carabaya, de 1930, mostrando o fotógrafo diante de um mar de montanhas. Poeta da luz, Martín Chambi sabia de cor a hora em que o lusco-fusco tomava conta das montanhas do Peru. E fotografou a si mesmo naquele momento zero, no qual tudo é mistério.