23/09/2020 - 13:17
Considerado o maior bioma úmido do mundo, o Pantanal soma 150 mil km² em território brasileiro. Está localizado nos Estados de Mato Grosso (35%) e Mato Grosso do Sul (65%), além de partes do norte do Paraguai e do leste da Bolívia, que somadas podem atingir cerca de 250 mil km². Segundo o Instituto Centro de Vida (ICV), o Pantanal já perdeu 19% de sua área para as queimadas.
Ainda conforme o ICV, e com base em dados da plataforma Global Fire Emissions Database, da Agência Aeroespacial dos Estados Unidos (Nasa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, 95% dos focos de calor deste ano estão incidindo em áreas de vegetação nativa.
O número de focos de incêndio registrados no Pantanal de janeiro a agosto equivale a tudo o que queimou no bioma nos seis anos anteriores, de 2014 a 2019, segundo levantamento do Estadão a partir de dados do Inpe. De 1.º de janeiro a 31 de agosto deste ano, foram registrados pelos satélites do instituto um total de 10.153 focos de incêndio na região. Se comparado com o ano passado, o número já é três vezes maior. Só nos 20 primeiros dias de setembro foram mais 5.900 focos de incêndios.
O Estadão conversou com a professora Cátia Nunes da Cunha, que fez pós-doutorado em ecologia da vegetação de áreas úmidas pelo Instituto Max-Planck da Alemanha e é pesquisadora associada do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal de Mato Grosso (PPG-ECB/IB-UFMT).*
Quais os prejuízos para a biodiversidade do Pantanal, já que os incêndios interrompem ciclos naturais que envolvem fauna e flora da região?
Não é um fogo normal, é um incêndio. Quando o fogo fica fora do controle e se torna incêndio, significa que a temperatura atinge níveis tão altos que ele calcina, ou seja, torra as plantas que se tornam pó. É uma situação nova, inclusive, para pesquisadores. Não registramos nada dessa intensidade ao longo de nossas pesquisas dentro do Pantanal. Tenho informação de fogo dentro da região, mas de forma mais branda. Por exemplo, quando analisamos o banco de sementes, estava lá perfeito, quer dizer que tinha capacidade de se regenerar. Agora, em uma situação de incêndios no momento atual, ainda não temos dados para que possamos avaliar o dano total à região. O que podemos dizer é, com base na experiência e de conhecimento adquiridos ao longo de anos no Pantanal. Além disso, é preciso aguardar e ver como será a resposta da natureza, associada às condições climáticas, com presença de chuvas ou não.
Além dos incêndios que estão se alastrando, o ano não começou bem para o Pantanal. O desmatamento está cada vez mais acelerado. O Rio Paraguai, principal formador do Pantanal, chegou a 2,10 metros em junho, mês marcado por apontar o pico ao longo do ano, o menor nível em quase 50 anos. A chuva também foi escassa na região. Qual deve ser o cenário mais provável para o Pantanal nos próximos anos com base em estudos sobre o bioma?
Um dos cenários nos leva na direção de que, em breve, teremos os efeitos da La Niña no Brasil, que já entrou em atividade (fenômeno climático que provoca o resfriamento da superfície das águas do Oceano Pacífico). Até chegar ao Pantanal demora mais, mas suponho que teremos períodos futuros secos. É uma possibilidade. É possível ainda ter a paisagem do Pantanal, como as pessoas dizem ‘começando a rebrotar’, mas isso é visão de olhar só para o verde na natureza, mas podem estar nascendo ali simplesmente espécies não desejáveis, espécies daninhas resistentes ao fogo, no lugar de capim e plantas nativas. Uma situação não favorável. Divido o Pantanal em função de sua flora, porque é um centro que converge vários elementos: elementos do bioma da Amazônia, do Cerrado do bioma Chaquenho e também da floresta tropical seca. Estamos no meio, onde esses conjuntos se encontram formando o grande mosaico que é o Pantanal. Só de plantas, são em torno de 2 mil espécies no Pantanal, entre árvores, herbáceas, plantas tipicamente aquáticas, arbustos e palmeiras.
Há diferenças na recuperação pelo tipo de solo e de vegetação. O Cerrado, por exemplo, se recupera mais rapidamente que a Amazônia. O que prever para a recuperação do Pantanal?
No Pantanal, a recuperação varia de acordo com as características de cada macrohabitat. Há macrohabitats com predominância de espécies do domínio do Cerrado, onde campos apresentam gramíneas com folhagens duras como são consideradas pelos fazendeiros por causa do alto teor de lignina e com seus sistemas de rizomas subterrâneos conseguem ser resistentes ao fogo. As árvores têm estratégias de proteção, cascas grossas e uma série de situações adaptativas. Nesse tipo de ambiente, vejo regeneração natural bastante promissora.
E para as outras áreas?
Entretanto, áreas que passam constantemente por incêndios têm perda na composição, na estrutura da vegetação e, consequentemente, também significa perda de habitats para os animais. A vegetação serve de abrigo/refúgio para eles, onde escolhem seu local de preferência dentro desse mosaico. Se tivermos cada ano uma chuva facilitadora, sem incêndios, acredito que em cerca de 30 anos é possível restaurar, como já observei em outros momentos e áreas que acompanhamos dentro do Pantanal. Mas pulando para outro conjunto de flora, as matas ciliares e floresta inundável, isso muda. Essas florestas têm baixa resiliência quanto a incêndios. Para essa vegetação serão necessárias avaliações mais detalhadas. Durante esses quase 50 anos em que o Pantanal não teve fogo dessa magnitude, nas áreas que acompanhamos, só agora, observamos o aparecimento de orquídeas, que antigamente existiam em abundância. Mas há evidências que estavam se regenerando, desde 1974, com o ciclo plurianual mais úmido. A regeneração, baseada nos resultados adquiridos, acreditamos que levará em torno de 50 anos. Caso a intensidade do incêndio seja mais grave, poderá levar mais tempo.
Como se dá a recuperação do local?
A recuperação natural age como um processo integrado no âmbito do ecossistema. Todas as interações envolvendo plantas e animais são preciosas para a recuperação. Cada espécie de planta tem um lugar preferencial no gradiente de inundação. Até a natureza acomodar tudo novamente, leva tempo, a recuperação ocorre aos poucos, lentamente e depende das condições de sazonalidade da inundação.
O que mais preocupa no Pantanal?
São as florestas secas. Por serem mais relictuais (espécie que atualmente é encontrada em uma área restrita, mas que no passado era distribuída em abundância) tiveram sua expansão na América do Sul nos períodos geológicos mais secos e entraram também no Pantanal. Suportam seca, mas não têm tanta habilidade para resistir a incêndios. Em programas de estudos ecológicos de longa duração, mantemos remedições. A inclusão de novos regenerantes sempre foi animadora. Indivíduos jovens de espécies tardias demonstravam a recuperação dos efeitos das atividades extrativistas de incêndios antigos. Em sobrevoo, constatamos a gravidade provocada pelo incêndio. Esse tipo de floresta tem relação com uma fauna muito específica, de mamíferos e aves, inclusive.
E quanto às plantas?
Há araputangas, angicos, paineiras, cedros… Com o incêndio, não sei em que estágio da sucessão natural voltarão. Ainda não avaliamos o que aconteceu realmente para podermos traçar o tempo da recuperação. Essa formação vegetal é parte da diversidade do Pantanal e ocupa os macrohabitats sem inundação, mas com solo apresentando saturação pelas chuvas. Hoje é de grande significado ecológico, já teve seu valor econômico, mas foi explorada até o esgotamento no passado. O Pantanal, além de ser de área úmida, apresenta característica complexa, onde o conjunto de manchas, de habitats e diferentes tipos de vegetação dá condições para uma fauna singular. Temos um trabalho intenso pela frente para estimar todas as perdas com os incêndios.
Quais ações devem ser tomadas também pelos fazendeiros?
A pecuária do Pantanal teve sucesso por causa dos campos nativos, os inundáveis têm alta qualidade nutricional e boa palatabilidade, tornando-se possível a criação de gado. Esta vegetação, porém, não é adaptada a fogo intenso. Este tipo de macrohabitat me preocupa, pois carece de normatização do seu uso, onde a forma tradicional de manejo deve ser o ponto de partida para promover o uso sustentável. Há necessidade de restauração destes campos com processo de proliferação de lenhosas. Com anos mais secos se desenhando em cenários futuros e com a presença de fogo, sem dúvida, haverá mais dificuldade na restauração. E isso aumenta a responsabilidade dos proprietários rurais em atuar com manejo adequado para manter esta formação vegetal ímpar. Uma ação conjunta entre ciência, proprietários, gestores ambientais estaduais e federais e ONGs poderá criar a compreensão de um manejo adequado das áreas sob perspectivas da restauração e manutenção da biodiversidade. Com abordagem fundamentada no uso tradicional, aliando a técnicas modernas de manejo sustentável, será fundamental para sensibilizar os novos pantaneiros.
Em Poconé (MT), o Pantanal virou cemitério de animais a céu aberto, com diversos deles carbonizados e feridos. Como os incêndios afetam a fauna da região? Ainda não se pode contabilizar quantas espécies foram afetadas, mas há risco de diminuição ou mesmo extinção de animais?
O Pantanal não tem fauna específica e endêmica. Reúne animais de vários biomas, igual à situação das plantas. Há populações de animais de outras áreas do Brasil e, inclusive, os considerados ameaçados. Até agora as populações desses animais estavam se recuperando. Programas de conservação de organizações não governamentais realizam projeto de recuperação, por exemplo, envolvendo a arara-azul, que no Pantanal encontra oferta de alimentos preferências e locais para sua nidificação. Outro exemplo de recuperação populacional e que é atrativo do turismo no Pantanal é a onça-pintada. As populações de animais que conseguiram sair da categoria de ameaçadas, hoje podem estar comprometidas novamente por causa dos incêndios. O tuiuiú, um dos animais símbolos do bioma, também foi uma espécie de ave afetada pelos incêndios, com seus ninhos dizimados.
O que se pode fazer em relação a isso?
Os especialistas da fauna silvestre acreditam que os animais mais velhos com mais experiência em relação a eventos do fogo conseguiram sobreviver. Evidências indicam que os incêndios têm afetado indivíduos mais jovens, com tudo isso, uma geração de animais está comprometida. A grande preocupação é que, sem água e recursos para se alimentarem, a situação é ainda mais grave para espécies que o Pantanal contribui para evitar a sua extinção. Há iniciativas de pesquisadores de diversas instituições de pesquisa regional, incluindo ONGs, empenhadas na avaliação do que foi perdido. Essa informação é fundamental para a tomada de decisão.
E em relação a prejuízos para ambientes aquáticos?
Todas as cinzas produzidas pelos incêndios são nutrientes, mas quando carregadas para os rios e lagoas, em grandes quantidades, causam o fenômeno conhecido na região por ‘dequada’, porque as cinzas alteram a qualidade da água, desequilibram o ecossistema aquático e causam mortalidade, principalmente dos peixes, anfíbios e invertebrados aquáticos.
A destruição do Pantanal pode trazer desequilíbrios a outros biomas do Brasil?
Não só aos biomas brasileiros, mas para todo o planeta. Com esse incêndio, estamos produzindo gases que contribuem com o efeito estufa. Liberamos, com os incêndios, o estoque de carbono tanto em forma de matéria orgânica acumulada (turfas tropicais) quanto da vegetação. A saúde da população que vive nesta região está sendo comprometida, agravando o quadro de quem tem doenças asmáticas e alérgicas. O que se torna mais grave em um momento em que também lidamos com a covid-19.
As ações adotadas pelas autoridades foram tardias no combate ao fogo?
As próprias autoridades hoje reconhecem que o Brasil agiu tardiamente para entender a gravidade da situação no Pantanal. Mesmo com a inteligência técnica científica brasileira alertando para o aumento dos focos de calor,de desmatamento e previsão das condições climáticas, o governo brasileiro ignorou esses alertas. Devemos reconhecer o papel do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (o ICMBio, órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelas unidades de conservação), da sociedade civil organizada e de ONGs atuando ao lado dos bombeiros que trabalham juntos incansavelmente no combate ao fogo e no resgate de animais feridos. Muitas ONGs buscaram recursos. Com eles, adquiriram equipamentos, remédios e alimentos para os animais, entre outras ações. Dá para acreditar que até um leilão de quadros fizeram para buscar recursos para melhorar o atendimento emergencial para a fauna. Essas iniciativas precisaram surgir para ocupar o espaço deixado pela ausência de ações de competência dos governos (federal, estadual e municipal), caso contrário, o desastre seria mais grave.
O Brasil estava preparado para lidar com essa situação?
Muitas ONGs atuam na linha de frente, no combate ao fogo e resgate dos animais, e outras reforçam, em âmbito nacional, a necessidade de uma infraestrutura, de planejamento estratégico para o Brasil poder atender emergências no combate ao incêndio no Pantanal e outros desastres. O Brasil não está preparado ainda para lidar com a situação. Foi clara a demonstração dos efeitos negativos que os desmanches das instituições da área ambiental e da inteligência técnica nacional de alertas provocaram ao Pantanal.
Investigação da Polícia Federal vê indícios de queimadas deliberadas para criação de área de pasto onde antes era mata nativa. As queimadas teriam começado em fazendas da região, em espaços inóspitos, dentro das fazendas, onde não há nada perto. Quais são as possíveis origens do fogo? Quem são os responsáveis pelo Pantanal em chamas?
A avaliação técnica da perícia mostrou que a origem do fogo é antrópica, ligada ao homem. Neste sentido, avalio que as autoridades competentes devem agir no rigor da lei. Os responsáveis precisam ser punidos.
Quais ações devem ser tomadas para combater e evitar queimadas tão devastadoras no Pantanal?
O Brasil deve usar toda sua excelência de infraestrutura de monitoramento para realizar planejamento estratégico para controlar tragédias de fogo ou inundações. A fiscalização e punição também devem ser mais efetivas contra os incêndios no Pantanal. Além disso, a população local e o homem pantaneiro precisam ser treinados sobre o manejo correto do fogo. O Brasil deve preparar a sociedade, em especial aquelas pessoas que têm relação com o fogo, para fazer uso correto. É papel do Estado investir em educação, conscientização e respeito ao Pantanal. Em meio ao turista engajado, sabe-se também que há aquelas pessoas que não respeitam, podendo atirar em animais, e que sujam e colocam fogo na natureza.
* Professora Cátia Nunes da Cunha, pós-doutorado em ecologia da vegetação de áreas úmidas pelo Instituto Max-Planck da Alemanha, pesquisadora associada do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INCT-INAU). Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal de Mato Grosso (PPG-ECB/IB-UFMT). Pesquisadora Associada do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP). Também coordenou o Núcleo de Estudos Ecológicos do Pantanal (NEPA) da UFMT, por 25 anos.