Eu já defendi Damares Alves. 

Foi no começo deste ano, antes da pandemia, quando o governo se preparava para lançar uma campanha de combate à gravidez precoce. Observei que a ministra, por ser mulher evangélica, sofria um apedrejamento simbólico cada vez que abria a boca. E argumentei que os patrulheiros estavam errados ao tentar calar a sua defesa da abstinência sexual para jovens taxando-a de obscurantista.

Naquele momento, quando tudo que existia era um debate interno, que também envolvia o Ministério da Saúde, não haveria por que calar a ministra. Convencer adolescentes a retardar o início da vida sexual é útil para reduzir os números de gravidez indesejada, alarmantes no Brasil. O que não se pode fazer é adotar a abstinência como única política endereçada aos jovens, pois há inúmeras pesquisas mostrando que isso não funciona. É indispensável instituir em paralelo outras medidas, da educação sexual à distribuição de contraceptivos.

Dias depois, quando a campanha foi lançada, reiterei minha defesa. O mote era “Tudo tem sua hora”, e as peças de comunicação encorajavam os jovens a informar-se, conversar com a família e os amigos e refletir sobre o começo da prática sexual. Nada de mandamentos na linha do “não faça sexo” ou “guarde-se para depois do casamento”.

Em retrospecto, no entanto, tendo a crer que todo o bom senso da campanha deveu-se ao Ministério da Saúde. Como o grosso do dinheiro para a publicidade viria dessa pasta, então comandada por Luiz Henrique Mandetta, ela deve ter tido a palavra final. Já não vejo razão nenhuma para dar um voto de confiança a Damares Alves. 

A última da ministra é querer banir o filme francês “Lindinhas” do Netflix – o qual, lembremos, não é um canal público de televisão, mas uma plataforma paga de streaming de vídeos. O filme fala da sexualização da infância. Mostra as coisas como são, não como deveriam ser. Ainda assim, fica evidente que os autores são críticos à realidade que captam. Faz sentido deplorar o que o filme mostra, não a iniciativa de mostrá-lo. Mas Damares quer banir o filme. 

Eu defendi Damares porque tentavam silenciá-la. Damares quer censurar um filme. Sou mesmo um trouxa. 

Há mais sobre a ministra. Quando se trata de seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, seu comportamento é de um servilismo abjeto. Já escrevi aqui: ela não deu um pio na semana passada, quando o presidente fez gracinhas de cunho sexual com uma menina de dez anos, durante uma transmissão ao vivo. Se ela realmente considera sagrada a defesa da infância, deveria ter pedido demissão. 

Damares reclama de um filme crítico à exploração da infância, exibido em plataforma fechada, enquanto faz vista grossa às boçalidades presidenciais, transmitidas para quem quiser ouvir. Isso tem nome: hipocrisia. 

Vale também lembrar da célebre pornochanchada ministerial de 22 de abril, aquela em que Bolsonaro mostrou com quantos palavrões se governa um país. Naquele dia, Damares se revelou toda excitada com a ideia de processar e mandar prender prefeitos e governadores que tentavam fazer valer medidas de distanciamento social, contrariando a vontade do presidente.

Mais uma, para terminar. Depois de empossar dois policiais rodoviários como chefes da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão subordinado à sua pasta, a ministra combinou com Bolsonaro a recriação da Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Mas com papel apenas consultivo, e não executivo, como tinha o conselho antes de o presidente desmontá-lo, no ano passado. A recriação é coisa para inglês ver. 

Damares, nunca mais. 

 

PS: Jair Bolsonaro disse hoje que o Brasil faz um bom trabalho na proteção ambiental. O tempo verbal está errado. O Brasil fazia um bom trabalho, antes que Bolsonaro chegasse ao governo com seu discurso de incentivo ao garimpo e ao desmatamento clandestinos, e sua política de desmonte dos órgãos de controle ambiental. Não adianta, Bolsonaro: seu Brasil é o da queimada, não o da preservação. 

Correção: A versão inicial deste texto descreveu o filme “Lindinhas” como documentário, o que não procede. O erro foi corrigido.