Desde que o Congresso aprovou um “orçamento de guerra”, autorizando o governo a gastar durante a crise da Covid-19 sem se preocupar com restrições fiscais, quase R$ 510 bilhões em créditos extraordinários foram criados. Dessa dinheirama, cerca de R$ 285 bilhões foram desembolsados até agora. Assim, é bem provável que nem todos os recursos sejam gastos até o final do ano, quando as regras de emergência perdem validade. Há muita gente assanhada em Brasília, no governo e fora dele, querendo pôr as mãos nessa “sobra” para usar em 2021.

A palavra “sobras” ficou entre aspas porque, obviamente, não é disso que se trata. O Brasil já está no cheque especial – e como. Qualquer moedinha extra que sai dos cofres torna o buraco ainda mais fundo. Gastar o dinheiro da emergência é gastar um dinheiro que, na verdade, não se tem. Por isso, também há gente rosnando para quem quer dar uma de joão sem braço e avançar nos créditos extraordinários.

O Tribunal de Contas da União rosnou bem alto ontem. Em resposta a uma consulta do governo, disse que o orçamento de guerra foi aprovado para o fim específico de combater os efeitos da pandemia. Se em vez disso o dinheiro for trocado de caixinha – para fazer, por exemplo, obras de infraestrutura – será uma malandragem semelhante à das pedaladas fiscais. Aquelas, que levaram Dilma ao impeachment.

O ministro da Economia Paulo Guedes e o presidente da Câmara também mostraram os dentes na manhã de hoje. Em um evento da Fundação Internacional para a Liberdade, Guedes garantiu: “Em 2021, voltaremos à trajetória fiscal e reduziremos drasticamente os gastos.” Lembremos que o governo está dividido nesse assunto. Guedes e sua turma resistem, enquanto ministros como Braga Netto e Rogério Marinho querem partir para a esbórnia.

Maia participou de uma live do setor de infraestrutura. “Nós já começamos a ver uma pressão grande para desrespeitar o teto de gastos porque precisa de dinheiro para isso, precisa de dinheiro para aquilo”, disse. “É a mesma equação que já vimos no passado e não deu certo.”

Acho que Guedes, Maia e o TCU estão certíssimos. O Brasil não pode se dar ao luxo de sinalizar para o mundo que abandonou o propósito de controlar as contas públicas. Não pode usar a pandemia como desculpa para voltar ao padrão petista de gastança estatal, porque ele leva ao desastre.

No entanto… também acho que algum gasto excepcional deve ser feito em 2021, para além daquilo que o teto de gastos autorizaria em condições normais. E não, isso não é uma contradição.

Há jeitos e jeitos de fazer as coisas. Contabilidade criativa como a que o TCU criticou é um jeito errado. Dar carta branca ao governo para tirar da gaveta planos como o Pró-Brasil, de investimentos, e o Renda Brasil, de gastos sociais, também seria um engano. Os dois ainda não foram desenhados com clareza. O Renda Brasil especialmente, que pretende substituir diversos programas assistenciais, precisa ser desenhado com muito cuidado, para que resolva de fato carências brasileiras, em vez de servir apenas de escadinha eleitoral para Jair Bolsonaro.

No entanto, flexibilizar o teto de gastos em 2021 com um aumento modesto da autorização para despesas – e aqui vai muita ênfase na palavra modesto – está longe de ser um disparate. Imaginar que a crise do coronavírus se encerra em 31 de dezembro não faz sentido. O próximo ano ainda deve ser visto como um período de exceção.

Um relatório recente da OCDE, que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, observa que “o caminho para a recuperação econômica depois do covid-19 não será linear e suave”. Isso vale mais ainda para o Brasil, que já vinha cambaleante. Hoje foi anunciado que o país voltou a ter 13 milhões de desempregados. Ainda há muita incerteza pela frente.

Como diz o mesmo documento da OCDE, nessas circuntâncias, capacidade de adaptação é tudo. “Todas as opções devem ser exploradas, incluindo ressuscitar velhas ferramentas, criar novas e ampliar esforços que já estejam em andamento.” Raciocinar por dogmas não vai dar certo.

No final do ano passado, dois economista dos BNDES, Fábio Giambiaggi e Gilherme Tinoco (ambos craques) apresentaram um estudo cuidadoso sugerindo uma flexibilização progressiva do teto entre 2023 e 2036. O aumento real dos gastos públicos começaria em torno de 1%. Os cálculos foram feitos para ampliar o poder de investimento do Estado, sem no entanto jogar pela janela a lógica da contenção fiscal.

Como tudo mudou com a pandemia, seria necessário voltar à prancheta. Mas é esse tipo de raciocínio que precisa ser feito: de longo prazo, sem levar em conta apenas as conveniências de quem está no poder no momento.