Um setor abandonado. Sem recursos nem expectativas. Poderia se tratar de qualquer segmento já que todos foram afetados pela pandemia de Covid-19. Mas é na área cultural, já marcada pela estrutura precária e informalidade, que o impacto da doença trouxe o vazio. Com o isolamento social, milhões de profissionais do setor estão sem trabalho desde março quando começaram a ser canceladas as agendas de turnês, shows, eventos, exposições, apresentações, espetáculos de todos os tipos e tamanhos em variados espaços culturais. Sem receber cachê nem qualquer outro tipo de cobertura assistencial, os profissionais da área estão enfrentando severas dificuldades.

Sancionado no dia 30 de junho pelo presidente Jair Bolsonaro, o PL 1.075/2020 destina R$ 3 bilhões ao setor, mas com veto sobre o prazo para que entre em vigor. Batizado de Lei Aldir Blanc em homenagem ao compositor morto pela Covid-19, o projeto destina um auxílio emergencial mensal de R$ 600, por três meses, aos profissionais da cultura, além de recursos para manter espaços culturais abertos e lançamento de editais. “Há técnicos de luz e de som, camareiras, bilheteiros, artistas de circo sem trabalho, precisam pagar contas, precisam comer. A aprovação do projeto era imprescindível” diz o ator e diretor Ivam Cabral (foto abaixo), um dos fundadores da companhia teatral Os Satyros.

Pandemia arrasa a receita de 5 milhões de brasileiros que vivem de arte

Mas a informalidade comum no meio artístico, a burocracia própria da liberação desse recurso emergencial e o veto do presidente, vão adiar ainda mais a chegada do socorro emergencial aos artistas. A Lei Aldir Blanc exige ao menos um cadastro público, o que a maioria dos informais não tem, além de atuação na área artística e cultural, com rendimento máximo de R$ 28,6 mil em 2018. O setor emprega cerca de 5 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE (2018), e quase metade deles autônomos. De acordo com o texto do PL, entre as fontes de verba apontadas estão 3% do produto de arrecadação das loterias, recursos do Fundo Nacional de Cultura (sem especificar uma porcentagem), além do Tesouro Nacional e “outras fontes de recursos”.

“Além da porcentagem das loterias, tem a verba do Fundo de Cultura, que é para isso mesmo, atender as necessidades da área”, diz Cabral. “Primeiro, para ajudar os profissionais que estão em desespero, principalmente os dos pequenos grupos do interior, e depois para criar uma política pública para a cultura.” Desde o início da pandemia, o grupo Satyros coleta e distribui cestas básicas, numa ação conjunta com o Sindicato dos Artistas. Ele conta também com as cestas doadas pelo Fundo Social de São Paulo, um lote de 600 unidades. “Artistas que nos emocionaram, mandam mensagem, ligam, pedindo uma cesta básica. É uma indignidade”, conta Cabral.

Pandemia arrasa a receita de 5 milhões de brasileiros que vivem de arte
17/06/2020 Odilon Wagner, Diretor. Foto.Claudio Gatti

À frente do Fundo Marlene Colé, criado por ele há quatro anos para apoiar técnicos e artistas das artes cênicas, o ator e produtor Odilon Wagner tem uma dedicação exclusiva desde o início da pandemia: arrecadar recursos. “Diante da necessidade, abrimos para os profissionais do circo, da dança, da ópera”, explica Wagner, vice-presidente da Associação de Produtores Teatrais Independentes (APTI). “Temos duas linhas de ação no Fundo, o cartão alimentação carregado com valores de R$ 500 e as cestas básicas, no valor de R$ 200, ambos entregues na casa da pessoa, para evitar contaminação.” Desde abril, foram atendidas 2,5 mil famílias de profissionais do setor artístico e cultural.

Além da venda de “ingressos” via tiqueteria Sympla, o Fundo Marlene Colé usa o site de sorteios Givenget para arrecadar recursos, promovendo o encontro virtual ente fã e ídolo. Com doações de R$ 15 a R$ 1000, quem compra mais números, tem mais chance de ganhar o sorteio. Já participaram dos encontros “globais” como Tony Ramos, Juliana Paes, Chay Suede e Sophia Abrahão. “Nosso setor foi um dos primeiros a parar e será um dos últimos a voltar”, lembra Wagner. E destaca a importância de ações solidárias. “O brasileiro não tem muito a cultura de abraçar uma causa, mas a solidariedade tem sido uma das coisas mais bonitas que está acontecendo neste momento.”

Pandemia arrasa a receita de 5 milhões de brasileiros que vivem de arte

Sem trabalhar desde o dia 12 de março, o light designer Camilo Bonfanti (foto acima) tinha a agenda de 2020 completa. Em poucos dias viu tudo ser cancelado Ele atua na área há mais de 20 anos, com projetos de luz para shows e peças de teatro. “Os prazos da volta foram se alongando, primeiro era julho, depois setembro, virou novembro. Agora se fala que será em 2021”, projeta. Apesar de ter uma reserva financeira, ele conta com a ajuda dos pais. “A gente renegociou o aluguel por três meses, faz economia, escreve textos e fica caçando coisas para fazer que possam render dinheiro. O projeto da Lei Aldir Blanc é legal, mas pode chegar tarde demais. Minha sorte e que tenho pai e mãe.”

Com quase 40 anos de atuação na área, a atriz Ester Laccava endossa as palavras de Bonfanti. “O setor está à deriva. O artista está vivendo de doações de amigos, familiares, de conhecidos, para não dizer vivendo de esmolas.” Para ela, no momento em que um país não valoriza e não socorre a cultura, ele perde sua identidade. “Esse é o sentimento de toda nação brasileira. Estamos sem RG”, conclui Ester. Locutora e atriz, Izabela Pimenta vai além. “É necessário entendermos a importância da arte, que ela gera emprego e renda. Todo mundo está sobrevivendo, cada um no seu isolamento, consumindo música, livros, filmes. Arte é tão vital quanto saneamento básico”, reflete.

Casada com um músico, ela questiona o valor do auxílio emergencial e a aprovação presidencial. “Sejamos sinceros, éramos duas pessoas trabalhando, para nós R$ 600 é insuficiente, nós caminhamos para a ruína financeira”, prevê. “E dificilmente essa lei será regulamentada porque Bolsonaro quer que os artistas morram, quer que os artistas sejam esquecidos.” Para o diretor do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Estado de São Paulo (Sated-SP), Carlos Henrique Pereira, o Carlão, a situação tende a piorar. “A categoria já enfrentava dificuldades com esse governo, que trabalha contra a cultura. A pandemia jogo por terra todos os nossos esforços”, avalia.

A parceria realizada entre o Fundo Social de São Paulo e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa já entregou 1,3 mil cestas básicas em maio e 3,4 mil em junho. A previsão é de entregar mais dois lotes: 3,5 mil cestas em julho, e outras 3,5 mil unidades em agosto. Segundo a Secretaria de Cultura paulista, cada cesta beneficia até quatro pessoas. Preferencialmente, as cestas são destinadas aos artistas atuam nas cidades do interior, sejam os independentes ou os que integram pequenas companhia de teatro, circo, dança, e que dependem basicamente de editais do governo para sobreviver.

Segundo o Sated-SP, são cerca de 30 mil técnicos e artistas no estado, metade deles da área técnica. “Do total, 90% estão em dificuldade e desses, 50% estão passando fome mesmo, principalmente os que estão nas cidades do interior”, afirma Carlão, que é sonoplasta e está há 90 dias sem trabalhar. “Desde o início da pandemia, nosso fundo social está arrecadando verba e transformando em cesta básica. Conseguimos também um  lote de 500 cestas do Fundo Social do governo paulista. Mas é insuficiente.” Carlão cita alguns movimentos espontâneos, via whatsapp, criados para ajudar a categoria dos técnicos: #backstageinvisivel, Amigos Samurais e Semanaudio, este em Fortaleza (CE).

“A nossa esperança é que isso tudo, essa ajuda, essa união da categoria contra um mal maior seja mantida depois da pandemia”, acredita Carlão. A esperança de manter viva a cultura também é tema de “A Arte de Encarar o Medo”, do grupo Os Satyros, que estreou no dia 13 de junho. É a primeira peça online, encenada via plataforma Zoom da companhia, com 18 atores em cena, cada um da sua casa. “A história ocorre num futuro distópico, daqui a 15 anos, ainda estamos em isolamento, somos pedacinhos de gente, nas telas”, explica Cabral, autor da peça com o sócio Rodolfo Vázquez. “É para a gente não se esquecer que continua vivo e que a arte pode se reinventar.”