Luiz Zanin Oricchio
Em 2014, a chinesa Fuyao comprou uma antiga indĆŗstria da GM em Ohio, fechada desde a depressĆ£o de 2008. A promessa era de recriar centenas de empregos nessa fĆ”brica de vidros de automĆ³veis. Os postos de trabalho de fato reaparecem, com os norte-americanos voltando a seus empregos. E mesclando-se a centenas de chineses que chegam para implantar o sistema de trabalho chinĆŖs em terras americanas.
Tema do documentĆ”rio American Factory, o filme tem uma curiosidade a mais: Ć© a primeira produĆ§Ć£o do casal Obama, para Netflix. A produtora deles chama-se Higher Ground Productions e os diretores do documentĆ”rio sĆ£o Steven Bognar e Julia Reichert. Quem assistir ao longa na Netflix serĆ” brindado por um curta-metragem que mostra o diĆ”logo entre os produtores e os cineastas. Bastante interessante. Barack Obama dĆ” uma de crĆtico e diz que o que o atrai no filme sĆ£o suas nuances, as sutilezas e complexidades dessa relaĆ§Ć£o laboral entre duas culturas.
Essa integraĆ§Ć£o de fato Ć© delicada e implica um encontro – e, sobretudo, desencontro – de culturas. Os chineses sabem disso. Tanto assim que o CEO chinĆŖs – um personagem e tanto, pela sua franqueza – Cao Dewang chega com ares de grande senhor, porĆ©m pisa de mansinho no novo terreno. Por exemplo, quando um auxiliar recomenda que ele decore o hall de entrada da fĆ”brica com duas estĆ”tuas – uma americana, outra chinesa – para simbolizar a uniĆ£o dos dois paĆses, o esperto chairman recomenda que nĆ£o: “Ponha sĆ³ a americana, senĆ£o dĆ” ciumeira”.
Mesmo com esses cuidados, a integraĆ§Ć£o mostra-se problemĆ”tica. Os americanos nĆ£o entendem muito bem o que os novos patrƵes desejam. Para remediar a situaĆ§Ć£o, alguns trabalhadores sĆ£o convidados para uma visita Ć matriz, na China. As confraternizaƧƵes sĆ£o bonitas, com belos discursos e brindes, mas pouco prĆ”ticas.
Isso porque a questĆ£o Ć© o choque cultural. Um novo diretor, nomeado pelo chairman, reĆŗne sua diretoria e tenta uma explicaĆ§Ć£o de fundo comportamental. As crianƧas americanas sĆ£o muito mimadas, ele explica. Fazem o que querem e os pais sĆ£o muito permissivos. Por isso, quando se tornam adultos, nĆ£o podem ser contrariados. Ć preciso tato para conversar com eles, pois nĆ£o admitem crĆticas. “Tem de fazer como para escovar um burro – sempre a favor do pelo; se for no sentido contrĆ”rio, hĆ” o perigo de levar um coice.”
Para seguir com as metĆ”foras, essas crianƧas crescidas, esses animais manhosos, tĆŖm de ser levados com jeito. Mas com firmeza. Mesmo assim, muitos nĆ£o se adaptam. Um deles diz que perdeu o emprego por ter levado tempo demais (trĆŖs ou quatro segundos) para encontrar um arquivo no computador. Seu superior chinĆŖs achou tempo demais. E o demitiu.
As metas chinesas sĆ£o altas: exigem uma produtividade sĆ³ alcanƧƔvel em jornadas de trabalho extensas e exaustivas, com um sĆ³ dia de repouso semanal, fĆ©rias curtas, etc. Querem que os norte-americanos trabalhem como os chineses. E, claro, hĆ” uma palavra a separĆ”-los: “Union”, ou seja, sindicato. E este se torna o centro do filme: a batalha pela sindicalizaĆ§Ć£o, que passa por um plebiscito no interior da empresa. A sindicalizaĆ§Ć£o Ć© fortemente combatida pela direĆ§Ć£o, pois prejudicaria a produtividade.
Terminaria, no entender dos novos patrƵes, por gerar novamente desemprego. O argumento lembra um pouco o papa da nova polĆtica econĆ“mica brasileira, autor da cĆ©lebre disjunĆ§Ć£o “VocĆŖs querem empregos ou direitos?”.
Quer dizer, American Factory, no fundo, Ć© um filme sobre o conflito entre capital e trabalho. NĆ£o hĆ” como acertar essa contradiĆ§Ć£o, pois os compradores da fĆ”brica exigem produtividade mĆ”xima, que nĆ£o combina com direitos trabalhistas adquiridos.
Premiado no Cinema Eye Honors, American Factory Ć© um documentĆ”rio observacional, talhado com enorme paciĆŖncia e emprego do tempo necessĆ”rio. Ouvimos as vozes dos operĆ”rios e tambĆ©m as dos patrƵes e chefes. Instalamo-nos no centro desse conflito de culturas e interesses e passamos a compreender melhor essa dinĆ¢mica do capitalismo em que todo arranjo parece precĆ”rio, desequilibrado e parcial, pois embate de forƧas assimĆ©tricas. A Ćŗnica forma de os operĆ”rios equilibrarem um pouco a partida Ć© atravĆ©s da representaĆ§Ć£o coletiva de um sindicato. Os patrƵes sabem disso. American Factory Ć©, no fundo, o relato de uma tragĆ©dia laboral contemporĆ¢nea.
Obama, quando presidente, disse nĆ£o ter uma varinha mĆ”gica para resolver o problema do desemprego no chamado “cinturĆ£o da ferrugem” (rust belt), do qual Ohio faz parte. Agora, como produtor de cinema, ajuda a refletir sobre a questĆ£o. Trump mira nessa regiĆ£o, com seus eleitores sem salĆ”rio e ressentidos, para se reeleger este ano.
As informaƧƵes sĆ£o do jornal O Estado de S. Paulo.