Aos 49 anos, Amyr Klink, filho de pai libanês e mãe sueca, é um brasileiro daqueles que fazem a gente se orgulhar de ser brasileiro. Casado desde 1996 com Marina Bandeira e pai das gêmeas Tamara e Laura, sete anos, e de Marininha, quatro anos, este ano ele juntou a família e foi para a raia olímpica da USP abrir um champanhe para comemorar os 20 anos da chegada do I.A.T., seu barco a remo de 5,94 metros, na praia da Espera, na Bahia, depois de ter partido de Lüderitz, na Namíbia, África, onde até hoje é conhecido como Captain Klink. O diário de bordo não registrou os 100 dias, 6 horas e 20 minutos da viagem. Amyr diz que ignorou os primeiros dias porque temia não concretizar a travessia, mas a última frase que escreveu foi: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, de Fernando Pessoa. Amyr recebeu ISTOÉ em seu escritório no bairro do Brooklin, em São Paulo. Concedeu uma entrevista em que fica claro que realmente valeu a pena. A seguir trechos da entrevista:

ISTOÉ – Qual é a sensação hoje, 20 anos depois daquela façanha?
Amyr Klink –
Eu nunca vi como uma façanha. Na realidade eu me apaixonei
pelos problemas da idéia. Eu remei seis anos ininterruptos na USP, na raia
olímpica, sem domingo nem feriado.

ISTOÉ – Você competia?
Amyr –
Sim, foi o único esporte no qual eu fui federado. O remo é um esporte
bonito porque exige muita dedicação. É um misto de força bruta com arte,
com balé, então exige muito sincronismo e cadência. Não é na força que
você ganha, é no conjunto, na flexibilidade.

ISTOÉ – Como surgiu a idéia da travessia?
Amyr –
Eu comecei a estudar francês na Aliança Francesa. Meu pai é libanês
e falava francês com sotaque de árabe e eu queria falar bem o francês, sem sotaque. Acabei estudando literatura francesa, mas chegou uma hora em que descobri uma estante de livros com histórias de viajantes de barco. Eram relatos bonitos, e um deles, que me marcou muito, foi o de um francês que atravessou o Atlântico Norte. Era um livro muito bom, em que o cara não tinha pinta de herói e fazia uma análise das tentativas anteriores de atravessar o Atlântico Norte a remo. Ele discutia, inclusive, por que os caras morreram, o estudo das correntes marítimas, os sistemas anti-ciclônicos. Naquele momento eu já estava querendo parar com o remo e ir morar em Parati quando tive um grave acidente com a mão direita. Aí parei de remar e me dediquei mais a ler.

ISTOÉ – Você foi para Parati?
Amyr
– Era uma época que eu não tinha dinheiro e resolvi morar em Parati.
Comecei a mexer com gado leiteiro, mas acabou não dando certo. Comprei
uns búfalos num leilão do Severo Gomes (ex-ministro morto num acidente de helicóptero) para pagar em dois anos. Montei uma leiteria e comecei a ganhar um dinheirinho. Tinha umas meninas que trabalhavam de madrugada e ficavam às cinco horas da manhá só enchendo os sacos com leite e dando nó. Mas com o banco me apertando comecei a entrar em pânico. Era um inferno.

ISTOÉ – E o projeto da travessia?
Amyr –
Enquanto isso, eu estudava as tendências dos ventos e das correntes no Atlântico Sul e cheguei à conclusão de que o melhor lugar para zarpar era de Lüderitz, que é um lugar absolutamente maluco, uma cidadezinha alemã, onde começou a exploração de diamantes na África. Estudei e cheguei à conclusão de que eu deveria pegar a corrente de Benguela, que é um fenômeno parecido com a corrente do Golfo no Hemisfério Norte, só que com a maior ondulação do Atlântico. Os caras de navegação que eu fui procurar disseram que era loucura, que eu tinha que fugir dessa corrente, que lá estavam as maiores ondas do Atlântico, que o famoso Cabo Horn é coisa para turista perto da Corrente de Benguela, etc., etc.

ISTOÉ – E o barco?
Amyr –
Enquanto ia amadurecendo a história da viagem, eu comecei a procurar
um lugar para construir o barco que eu decidi fazer com madeira laminada, um processo muito bonito, que até hoje usa uma tecnologia muito nobre. Um dos melhores construtores de veleiros rápidos em madeira moldada estava em Santa Catarina. Eu peguei um ônibus, um esboço do projeto e fui para lá. Cheguei e o cara, um uruguaio muito arrogante, Horácio Carabelli, falou: “Deixa eu ver o projeto do seu veleiro.” Eu falei: “Bem… não é bem um veleiro.” E ele: “Bom, mas que barco é este?” Aí eu disse: “Na verdade…” Aí eu abri o mapa do Atlântico e falei: “Olha, eu estou estudando há quase dois anos as correntes do Atlântico Sul…” Ele me interrompeu e falou: “Você não leva a mal, mas isto aqui é um lugar de gente séria, você pode ir embora. Foi tudo o que ele falou pra mim. Eu fui embora ofendidíssimo. Eu queria morrer,estava destruído.

ISTOÉ – E o que você fez?
Amyr –
Eu encontrei uma velejadora de São Paulo, a Sybille Buckup, que foi quem introduziu a classe Optimist (veleiros de competição para crianças iniciantes) e me apresentou um garoto, um argentino de 20 anos que arrumou um sócio que desenhava bem e montou um estaleiro em Vilar dos Teles, em Nova Iguaçu, no Rio, no coração sangrento lá da Baixada Fluminense. Ele estava começando a fazer veleirinhos ali e foi o único cara que não riu. Ele me falou: “Eu tenho um espanhol lá no estaleiro que mexe com madeira laminada. Vamos lá, vamos fazer o seu barquinho.” Aí, eu fui fazer o barco lá em Nova Iguaçu.

ISTOÉ – Quando foi isto?
Amyr –
Isto foi um ano antes da partida. E foi uma loucura porque o barco foi ficando pronto e eu ia três dias por semana para lá. Ia de ônibus, tinha que descer na Dutra, dormir em motel. Era uma epopéia. Deu certo, o barquinho ficou bom e aí surgiram as idéias felizes. O sistema de lastro foi uma delas.

ISTOÉ – Como é isto?
Amyr –
Num barco a remo você não pode pôr chumbo, como num veleiro, para ele não capotar. Remar em um barco carregando chumbo não faz sentido. O francês do livro que atravessou o Atlântico Norte tinha usado um sistema de lastros líquidos em que ele enchia o fundo do barco de água salgada com bolsas. Ele tinha uns tanques de água doce em bolsas iguais a tanque de carro de corrida. Eu tive a idéia de usar o mesmo sistema, só que, junto com as bolsas de água doce, eu pus outras iguais, conectadas a um sistema de água salgada. À medida que eu ia consumindo a água doce, eu ganhava espaço para lastrear o barco com água salgada quando o mar estivesse ruim. Isso funcionou muito bem.

ISTOÉ – Como é que você enfrentou as tais ondas terríveis da Corrente de Benguela?
Amyr –
Todos os que morreram nas tentativas anteriores morreram porque os barcos capotaram. Num dos casos, o barco chegou sem o cara dentro. No começo desse projeto, tentamos fazer um barco que não capotasse. Então o barco foi crescendo para cima. Eu vi uma foto de um barco escocês que o cara colocou um tambor em cima para que, se ele capotasse, o tambor impediria que ele tombasse. E tudo isto foi virando uma aberração que desafiava aquela lei que diz que a eficiência aero ou hidrodinâmica depende de um componente que se chama beleza. Se não for bonito, não funciona. Parece até preconceituoso falar isso, mas é verdade. Chegamos então à conclusão de que estava tudo errado. Decidimos começar de novo. Não tem como não capotar com onda de nove metros de altura. Vai capotar. Nós temos que fazer o contrário. Nós temos que fazer um barco desenhado para capotar. Com total instabilidade para ele capotar sem sofrimento. E se precisar a gente vai atravessar o Atlântico, da África até o Brasil, capotando. E cada vez que não capotar vamos estar no lucro. E o segredo para não capotar, ou capotar menos, era trabalhar as bolsas de lastro de água. Eram sete bolsas de água doce e seis de água salgada. Quando o mar começava a encrencar, eu ia enchendo as bolsas. O barco ficava semi-afundado. O cockpit ficava cheio d’água. Era assustador. Mas ele ficava superestável e as ondas passavam por cima.

ISTOÉ – Qual foi o maior prazer que você teve na viagem?
Amyr –
Apesar da tensão, acho que foi no dia que me liberaram para sair. Eu já estava considerando perdida a viagem. Era muita burocracia. Os africanos tinham gasto muito dinheiro na tentativa de resgate de três militares que morreram tentando a travessia, e isso criou muitas resistências à minha partida. Acabou vencendo uma certa habilidade brasileira de negociar. A decisão final estava com o capitão dos portos de Lüderitz, que é uma cidade árida, sem nenhum tipo de madeira. Esse capitão acabou se interessando pelo contêiner de madeira que eu usei para transportar o barco do Brasil para lá e que fez um tremendo sucesso em Lüderitz. Eu tinha um amigo alemão lá, o Gunther, que falou: “Por que você não dá o contêiner para o capitão dos portos?” Aliás, eu já tinha dado o contêiner para o Gunther pelo que ele estava me ajudando. Eu já estava lá havia um bom tempo e tinha só 50 dólares, sem saber como voltar para Brasil e prestes a virar um problema diplomático. Aí, o Gunther deu o contêiner para o cara e o cara começou a conversar. Eu expliquei o projeto para ele e mostrei a minha carteira de capitão amador – a habilitação para conduzir embarcações em qualquer parte do mundo – e ele se impressionou tanto que, além de liberar a partida, passou a me chamar de Captain Klink, meu apelido até hoje na África do Sul.