"Do pó vieste e ao pó retornarás”. Essa frase do livro Gênesis é talvez uma das mais conhecidas da Bíblia e guarda em si uma verdade quase inexorável. Não importa qual seja a sua religião, o fato é que o corpo humano, após a morte, está fadado ao fim. Na Igreja Católica, porém, relatos garantem que alguns santos foram capazes de superar a corrupção da carne e mantiveram seus corpos preservados muito tempo após o falecimento – são os chamados “santos incorruptos”. Na semana passada, um caso similar, e que já está sendo considerado milagre pelos fiéis, chamou a atenção do Brasil. Durante uma exumação, o coração do padre Ângelo Angioni (1915-2008) foi encontrado intacto sete anos após a sua morte, em José Bonifácio, no interior de São Paulo.

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PRESERVADO
Ossada e coração do Monsenhor Ângelo Angioni foram exibidos
na Igreja Matriz de José Bonifácio (SP) no domingo 7

O órgão foi descoberto por postuladores romanos, responsáveis por colher informações para beatificações, e que atualmente investigam a indicação de Angioni a santo. Ao abrir o caixão, os postuladores se depararam com as vestes do padre e, dentro delas, os ossos e o coração preservado. Os frequentadores da Igreja Matriz da cidade puderam ver o coração de perto no domingo 7, quando ele foi apresentado no início oficial dos trabalhos diocesanos para o processo de beatificação e canonização do pároco. O fenômeno foi interpretado pelos devotos como um sinal da santidade do monsenhor Angioni, enquanto legistas levantaram dúvidas sobre o aspecto transcedental do caso.

“Em 22 anos como legista e com mais de 300 exumações realizadas nunca vi um caso como esse”, diz Jorge Paulete Vanrell, professor de medicina legal de São José do Rio Preto (SP). Opinião compartilhada por Ivan Miziara, professor do departamento de medicina legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e superintendente da polícia técnico científica de São Paulo. “Um coração estar intacto sete anos após a morte é um fenômeno que não tem explicação dentro da teoria clássica de decomposição dos corpos”, diz Miziara.

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Segundo o especialista, no processo de decomposição natural do corpo humano, o coração, que é basicamente um músculo, demora cerca de 25 meses para se desfazer totalmente. A preservação do órgão pode ocorrer de forma natural apenas em duas ocasiões: quando há a mumificação (espécie de ressecamento), se o corpo for sepultado em uma região quente e seca – caso da cidade de José Bonifácio, ou na saporificação (quando o corpo se torna uma espécie de sabão), se o cadáver for enterrado em uma região argilosa e úmida. “Porém, mesmo quando há uma mumificação natural, por conta do ambiente onde o cadáver foi sepultado, esse processo normalmente acontece no corpo todo e não em apenas alguns órgãos”, diz Vanrell. Miziara, por sua vez, ressalta que é preciso confirmar se o coração do padre é verdadeiro. “Apenas um exame de DNA no órgão e na ossada provaria que se trata de um coração real e de que ele é de fato do padre Angioni.” E Vanrell acrescenta que “caso seja de fato um coração, deve ser realizada ainda uma bateria toxicológica, para identificar se alguma substância agiu para que o órgão se preservasse.”

A Igreja Matriz de José Bonifácio, no entanto, garante que nenhuma técnica de preservação foi utilizada no coração do monsenhor Angioni. De acordo com o padre Mauro Ziatti, novo padre da paróquia, Angioni foi sepultado em um túmulo convencional, dentro da igreja, planejado pelo próprio monsenhor em 1995. “A preparação do corpo dele foi normal, não foi usada nenhuma substância diferente, e ele foi sepultado em um túmulo comum, com a diferença de estar localizado dentro da igreja”, conta pe. Mauro.

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A descoberta do coração intacto não terá influência direta no processo de beatificação e canonização de Angioni, pois não é considerado um milagre pelos postuladores, porém pode beneficiar indiretamente a indicação, ao atrair mais devotos para o padre. “Com a divulgação desse fato, ele irá se tornar mais conhecido, mais pessoas pedirão graças a ele e, consequentemente, haverá mais possibilidades de que se comprovem milagres conquistados através de sua intervenção”, diz Francisco Borba, coordenador do núcleo de fé e cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ao mesmo tempo, o coração preservado fortalece a convicção daqueles que têm devoção a esse servo de Deus. Para eles, o fato de o órgão não ter se deteriorado com o tempo é uma prova inequívoca da santidade desse padre.”

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Fotos: Toninho Cury