31/08/2005 - 10:00
Vítima de um erro jornalístico, que o envolveu com os anões do Orçamento, o deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), então presidente da Câmara dos Deputados, acabou sendo cassado em 1994, dois anos depois de presidir o impeachment de Collor. Voltou a Porto Alegre para começar tudo de novo. Aposentou-se como promotor, vestiu outra vez a camiseta de cartola do Internacional, deu aulas de direito constitucional e voltou à política pela base: foi o vereador mais votado de Porto Alegre, pelo PMDB, em 2004. “Sou apenas um baixo clero”, brinca o vereador Ibsen, 70 anos, cabelos grisalhos. O livro de memórias (“um relato, não um desabafo”) em que vai descrever sua montanha-russa existencial está na geladeira e lá vai ficar: “Não posso ser um jogador veterano, que ainda joga, e ao mesmo tempo comentarista fora de campo. Livro, só depois que acabar o mandato”, avisa. Mas o título já está pronto: Os inocentes não têm cúmplices. Em entrevista a ISTOÉ, ele compara Collor e Lula, disseca o PT e expõe o fio da navalha do impeachment: “Ele é impossível ou inevitável.”
Crises são geralmente profundas e curtas. Outras são longas
e rasas. Esta tem uma feição rara e mais complexa, porque é longa e profunda.
A primeira diferença é que Lula não é Collor, e isso é um bom sinal. Lula
é um homem com história de vida, Collor praticou um ato de aventureirismo político. Mas há uma semelhança importante: nos dois casos, eram projetos de poder, com matriz de atos de corrupção. Foram estruturas fortes, engajadas num processo
de instrumentação financeira para o poder. Na crise atual, do ponto de vista
pessoal, pode ter relevância saber se fulano sabia ou não sabia. Do ponto de
vista político, não é o principal.
O principal é que a responsabilidade política do governo e do PT são inquestionáveis. Não seria possível fazer o que se fez sem o consentimento até de alguns que não quiseram saber. Até a descoberta da corrupção pelo conflito
entre parceiros, o sentimento dominante no PT é de que isso não era corrupção.
Era pura luta política, luta pela causa. Montesquieu dizia que “não há vício maior
do que a exacerbação da virtude”.
A causa. Um país a favor dos excluídos, mais igualitário. Tudo valia, tudo se justificava, tudo se santificava. Sem querer ofender, o nazismo também tinha sua causa: era um partido nacional socialista, dos trabalhadores. Stalin tudo fez pelo socialismo, até Gulag. Do ponto de vista político, o principal é a responsabilidade coletiva. Não tenho dúvida de que pessoas como José Dirceu, Luís Gushiken, José Genoino não podem se confundir com corruptos que fazem tudo isso para se arrumar. Conheço os três, acho que fizeram como entes políticos.
Não tem como não saber. O que pode é variar o grau de informação.
Não faço uma avaliação pessoal, nem de um nem de outro. Dirceu é
um quadro político. Ele deve ter feito por razões que considerava boas. Esta é
a gravidade da deformação.
Há uma semelhança sim: ele pode ser cassado, e os defeitos podem ter contribuído. Mas as virtudes também influem. Virtude é coisa que cassa.
Ser um quadro político competente, dedicado, com uma trajetória de seriedade, tudo isso provoca contradições. É mais fácil hoje defender Delúbio
do que Dirceu.
Não acho que ele seja arrogante. Eu sei que não sou, sou apenas tímido. E timidez passa idéia de arrogância. A trajetória de Dirceu lhe granjeou inimizades, inveja e adversidades internas. Acho que Dirceu corre o risco de ser linchado.
CPI é uma coisa boa. É um nível de investigação que só o Parlamento
pode atingir. O poder é que pode investigar o poder. Polícia, por mais que queira,
é subordinada. Ministério Público, por melhor que seja, tem limitações. E o
Judiciário é estático, só julga quando provocado.
Muitos dizem que o PT era diferente dos outros partidos, e isso se diz para agredir os outros. Hoje se fala que ele é igual a todos, o que é de novo uma forma de agredir os outros. O PT é igual aos outros partidos, graças a Deus.
O contrario é que é falso. O PT se construiu em cima de uma falsidade.
Um partido não tem o direito de fazer do moralismo uma bandeira progressista. Historicamente, o moralismo é uma bandeira conservadora. A direita é que é moralista. A esquerda tem conduta moral.
Houve uma tentativa do PT no Congresso Nacional de espraiar para desviar o foco. De certa forma, teve algum êxito, por exemplo, ao dizer que não houve um fundo para comprar deputado. Houve só caixa 2, algo que ninguém nunca admitiu. O PT confessou uma ilegalidade para esconder outra muito mais grave. Um fundo para comprar deputado e formar maioria incide em peculato, corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha, falsificação de documentos e falsidade ideológica.
Investigação parlamentar é isso. Precisamos de mais vida democrática para aprender. Temos só 20 anos de democracia contínua, o período mais longo desde dom Pedro II. De 1946 para cá, presidente que não cooptou caiu: Getúlio, Jânio, Jango, Collor não terminaram seus mandatos. Sarney cooptou com competência e atravessou seu período. FHC cooptou depois da eleição e, mais tarde, antes da reeleição.
Alguns partidos trouxeram uma contribuição terrível para a perda de limites na vida pública. A fisiologia do passado se limitava à busca de espaço. Hoje se compra com grana, em espécie. O que tem valor não é mais a representatividade do cargo, mas sua capacidade reprodutiva de recursos. Quem é que queria antes ser diretor do DNIT? Os candidatos queriam era ser ministro das Relações Exteriores. E o poder de barganha para fazer caixinha no Itamaraty é zero. Aconteceu esta mudança para pior e acho que o flagrante que o País deu, agora, foi positivo.
Collor não tinha partido. Quando se isolou, terminou. O impeachment passou de impossível para inevitável. Dr. Ulysses dizia que, nas crises, quem comanda é Sua Majestade, o Fato. Esta crise também se alimenta de fatos inesperados, surpreendentes. O impeachment, hoje, é impossível. Mas pode
passar a inevitável, sem transição.
Faltam todos os requisitos. Primeiro, tem que ter o fundamento criminal, a responsabilização pessoal e direta. Segundo, tem que ter apoio político, maioria no Parlamento. E para isso, finalmente, tem que ter apoio social. E não há nada disso.
Voltemos ao Collor. Não houve uma única palavra dele contra o PC, nunca, nem agora que está morto. Se isso é um sintoma, cada um pode julgar.
Acho que este sentimento está passando para as pessoas.
Ninguém quer o impeachment de Lula. Um processo leva quatro, cinco meses e, neste intervalo, a economia vai para o vinagre. Saindo o Lula, vem o vice, que derruba os juros, faz uma bolha na economia e vira um candidato fortíssimo
na reeleição. Ninguém quer o Zé Alencar – nem o PFL, nem o PSDB, nem o PMDB. Sem os dois, assume Severino Cavalcanti por 30 dias, mas só depois do afastamento definitivo do presidente. A Câmara dos Deputados vota o afastamento, mas quem julga é o Senado. Do afastamento ao julgamento de Collor, foram três meses. Portanto, não é apenas um mês de Severino, são pelo menos três. Outra hipótese na sucessão é o senador Renan Calheiros, que também deve provocar reações. O que segura Lula é que ninguém tem interesse no impeachment. Ele é ou impossível ou inevitável. Não há meio-termo.
A capacidade de regeneração da esperança está na natureza humana. Só
se decepcionou quem acreditava nisso. Pouco antes da eleição, me perguntaram
em quem votaria: “Como sempre, no candidato mais à esquerda, José Serra.” Isto é rigorosamente verdadeiro: Serra, velho presidente da UNE e estatista, estaria trombando com o FMI, baixando os juros, brigando com a banca.
Ele não quis fazer concessão política e preferiu comprar apoio. Voto comprado não tem opinião.
No sentido de legitimidade para inovar, sim. Politicamente, pode estar definitivamente emasculado. Lula devia fazer agora como Itamar: não governou com nenhum partido, o que lhe permitiu governar com todos. O próprio PT não atrapalhou Itamar. Itamar ficou como um andor que todos tínhamos que carregar. Se optasse por isso, Lula provavelmente não teria mais problemas no Congresso. Seria uma política de manutenção, de sobrevivência até o final.
Em qualquer lugar do mundo, um
presidente de 53 milhões de votos contra um Congresso desgastado produziria, provavelmente, um surto autoritário. De certa forma, a equalização que o povo faz é pelo Lula e sua responsabilidade. Se ele é culpado, vamos julgá-lo politicamente nas urnas de 2006. Acho que a maioria do povo está pensando assim.
Muitos partidos decepcionaram. O PMDB chegou a eleger 22 de 23 governadores com Sarney, mas como era uma frente democrática não teve como governar e corresponder. A decepção com o PMDB não foi tão grave, ao contrário da expectativa que havia com o PT. O PMDB teve um período de hibernação, da qual agora se recompõe. Talvez o PT seja obrigado a viver esta hibernação.
Quem souber é porque está mal informado. Acho o Lula excepcionalmente bem dotado e inteligente para enfrentar a crise. O problema é que ficou sem massa crítica e política ao seu redor. A idéia do Itamar de governar com todos tem um preço: é não concorrer. Basta que Lula diga que está se propondo a não concorrer. Não sei se ele está pronto para isso. Todos somos prisioneiros dos próximos fatos. Se os fatos ficam por aqui, teremos uma lenta agonia do governo, até o final. Se algo acontecer, virá o inevitável.