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Antônio e Maria raparam as economias e
fizeram até empréstimo para custear
a viagem do filho Hermínio 

É difícil que o futuro pareça promissor para um jovem que vive na região de Sardoá, município de 5.500 habitantes no interior mineiro. O trabalho ali é escasso. Umas poucas lavouras de café e milho, vagas eventuais de servente de pedreiro em alguma obra e bicos de ocasião nos sítios de Santa Efigênia de Minas, a cidade vizinha, também acanhada com seus 4.600 habitantes. Quando muito, o trabalho por ali rende R$ 25 por dia. Hermínio Cardoso dos Santos morava em Sardoá. Juliard Aires Fernandes, a cinco quilômetros de distância, em Santa Efigênia. Eram amigos e levavam uma vida pacata, bem nos moldes interioranos. Juliard era mais falante, popular e fazia certo sucesso com as meninas. Hermínio, não. Reservado, ele gostava mesmo era de jogar conversa fora com os amigos, passeando à noite pelo centro da cidadezinha. Meses atrás, os companheiros de Hermínio começaram a ouvi-lo repetir uma frase. “Está chegando minha hora”, dizia, faceiro. Aos 24 anos, ele estava prestes a realizar o antigo sonho de embarcar rumo aos Estados Unidos. Em Sardoá é assim: o destino dos jovens humildes é tentar ganhar a vida no Exterior.

A ambição de Hermínio era modesta. Ele não esperava fazer grande fortuna. Pretendia apenas acumular o suficiente para comprar uma moto, um carro e uma casa própria. “Meu filho foi criado na roça. Não tinha leitura para arrumar emprego bom”, lamenta a mãe. Dona Maria, 58 anos, dobra e desdobra a beirada da toalha da mesa seguidas vezes. Com os olhos baixos e as mãos trêmulas, ajeita delicadamente o tecido quadriculado enquanto fala do caçula. “Ele ficou 11 anos na escola, mas parece que tinha pouca inteligência. Foi da quarta para a quinta série e da quinta não passou.”

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Maria da Glória, tia de Juliard, e Alírio, o pai,
relembram a vida de um menino alegre e sonhador

Hermínio é o sétimo filho de dona Maria com o lavrador Antônio Ramos dos Santos, 64 anos. Desde que o irmão João Paulo cometeu suicídio, ele implorava para que os pais o ajudassem a sair do Brasil. Dizia que não queria acabar da mesma maneira. João Paulo se desesperou porque os pais não tiveram condições de bancar sua viagem para a América. No Natal de 2005, ele amarrou uma corda num pé de eucalipto na frente da propriedade da família e se enforcou. Tinha 23 anos. Para dona Maria e seu Antônio, a perda do filho foi um alerta para que o desejo do mais novo fosse atendido. “No meu tempo, era mais fácil. A gente não se interessava por carro, moto, nada disso”, lembra seu Antônio. “Mas, agora, os meninos vão crescendo vendo de tudo: televisão, bicicleta. Eles estão caçando um meio de fazer a vida deles e a gente não tem como impedir.”

Primeiro, seu Antônio e dona Maria juntaram as economias e fizeram um empréstimo para mandar Hermínio para a Itália. O rapaz permaneceu no país durante nove meses fazendo de tudo um pouco, até ser preso e deportado. Em junho deste ano, tentou ir para Portugal. Acabou barrado ao desembarcar na Espanha, onde pegaria um voo para Lisboa. Como a Europa lhe fechou as portas, Hermínio achou que os Estados Unidos fossem sua única saída. O amigo Juliard, 19 anos, também disposto a encarar a aventura, parecia o companheiro perfeito para a empreitada. Os dois conviviam desde a infância, colecionavam afinidades e Juliard ainda tinha mais de uma dezena de parentes nos Estados Unidos – uma porção de gente que poderia lhes dar abrigo e uma força para procurar emprego. Teriam um futuro melhor.

Hermínio e Juliard, meninos simples, crescidos na zona rural, partiram no início de agosto e nunca mais deram notícias. Há duas semanas, o cadáver de Juliard foi encontrado num galpão destelhado no norte do México, a 160 quilômetros da fronteira com o Estado americano do Texas. Estava entre os 72 imigrantes ilegais executados por narcotraficantes que tentaram recrutá-los para o crime. Até a manhã da sexta-feira 3, Hermínio não havia sido localizado. Nem vivo. Nem morto. O passaporte dele, porém, foi achado no local da chacina. Cerca de metade das vítimas ainda não foi identificada. “Tenho uma esperançazinha”, afirma dona Maria. “Se ele estiver vivo, é felicidade. Se estiver morto, o que há de se fazer? Vou levando até quando Deus quiser.”

O massacre assustou os moradores do leste mineiro. Sardoá e Santa Efigênia de Minas estão encravadas numa região conhecida como Vale do Rio Doce e fazem divisa com Governador Valadares, o principal polo exportador de brasileiros para os Estados Unidos. Estima-se que cerca de 20% da população de Valadares e do entorno esteja no Exterior, principalmente em solo americano. Jean Charles, o brasileiro assassinado pela polícia de Londres, era nascido na região.

Embora mortes de ilegais sejam frequentes na travessia pelo México, especialmente na passagem pelo deserto ou pelos rios, elas sempre foram tratadas como tragédias individuais e pontuais. Essa é a primeira vez que esse tipo de carnificina vem à tona. Juliard e Hermínio se tornaram símbolos da violência crescente praticada por criminosos ligados a cartéis de drogas. Sequestros são comuns e ocorrem há tempos na região, tanto do lado mexicano quanto do americano.

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Homenagem em Sardoá, município onde Hermínio morava

 

Juliard tem uma vítima na própria família. O pedreiro Wander Aires Fernandes, primo dele, passou cinco dias em cativeiro. No final de 2006, tentou entrar ilegalmente com a mulher nos Estados Unidos e quase perdeu a vida. O grupo de Wander completara 25 dias de travessia quando, de repente, apareceu uma caminhonete para apanhá-los. No tumulto, três imigrantes não conseguiram entrar no carro. Um hondurenho e duas brasileiras – uma delas, Rosângela, mulher de Wander. Os que ficaram para trás acabaram presos e deportados. Rosângela permaneceu 43 dias no cárcere. Wander e os outros que embarcaram no veículo, em vez de seguir para Massachusetts, como tinha sido combinado, foram levados para um esconderijo em Houston, no Texas. Lá, ficaram sob a mira de armas e suas famílias foram obrigadas a pagar resgate. Wander conta que os bandidos ligaram para os pais e os irmãos dele. Cada vez que seus parentes depositavam a quantia pedida, os sequestradores exigiam mais. No total, eles desembolsaram US$ 14 mil. E Wander só foi liberado porque começou a chorar e implorou para não ser assassinado.

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Amigo de Juliard, Rondinélio Gomes também
garantia empregos eventuais ao rapaz

Os conhecidos de Hermínio e Juliard relembram com emoção as histórias dos rapazes. “Como o Hermínio não tinha carteira de habilitação, ele costumava deixar a moto na garagem da minha casa”, conta o professor de matemática Renato Lélis, 29 anos. “Só ia embora lá pelas 2h ou 3h da manhã.” Na lanchonete Sabor de Minas, em frente à Igreja Matriz, Hermínio pedia pequenas doses de uísque ou de maria mole – uma mistura de conhaque com coquetel de maçã. Às vezes, se sentava na praça com o copo na mão. Quando estava em casa, se esparramava num colchão sobre o chão para assistir à televisão. Acompanhava as novelas da Rede Globo e do SBT ao lado da mãe.

“O Juliard era um bom parceiro de sinuca e futebol”, relembra Rondinélio Gomes, amigo que também contratava o rapaz para fazer serviços em sua propriedade. Juliard foi criado pelo pai, o pedreiro e carpinteiro Alírio Aires Fernandes, 66 anos. Caçula entre dez filhos, sempre se mostrou um menino calmo e apegado à família. Fazia as tarefas domésticas com disciplina. Lavava, passava pano no chão, tirava o pó. “Ele quis colocar uma cerâmica branca no chão para ficar igual à minha casa”, conta a tia Maria da Glória Aires Farias, 48 anos. O piso clarinho contrasta com o quintal de terra e a poeira que cada passo levanta do lado de fora. A janela de vidros coloridos do quarto de Juliard dá para as plantações de laranja, mandioca e trepadeira. Depois que ele morreu, a família descobriu um caderno de poemas e que, na “Bíblia” herdada da mãe, Juliard escreveu nomes de parentes e amigos pedindo proteção. Nos últimos anos, ele sofreu uma série de perdas. Uma tia foi assassinada pelo marido e um tio por um desafeto. Em dezembro de 2009, Juliard foi visitar a mãe e levar um presente de Natal e a encontrou sem vida, vítima de um infarto fulminante.

Os dois amigos se divertiam jogando sinuca num bar (abaixo) de Santa Efigênia de Minas. 
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Acima, a família Brito, antigos conhecidos que Juliard gostava de visitar

Quando era molequinho, Juliard ia para a escola com chinelo de dedo ou descalço. Caminhava pelas estradas estreitas de terra batida com os cadernos debaixo do braço. Logo que terminou a quarta série, largou os estudos. Vaidoso e bem-humorado, depois que se tornou adolescente e ficou com os braços fortes começou a se gabar da forma física. “Eu não sou o mais bonito?”, perguntava, sem a menor cerimônia, com os cabelos cuidadosamente fixados com gel. Juliard era comedido na bebida. Divertia-se nas festas religiosas e nos festivais da laranja e do amendoim. Para viajar aos Estados Unidos, vendeu um cavalo que ganhara de presente da tia Maria da Glória e arrecadou mais um pouco com a família. Visitava os parentes com regularidade. Da tia Maria de Fátima, apreciava o franguinho e o angu de banana. Parava para fazer uma boquinha onde tivesse jiló.

Juliard estava começando a se desgarrar. Gostava de pilotar a moto de 125 cilindradas do pai e assumir o volante do carro, mesmo antes de poder tirar a carteira de habilitação. Só motorizado ele conseguia chegar rápido da zona rural até o centro da cidade. Juliard fazia questão de jogar uma pelada com os amigos nos fins de semana. Gostava de músicas sertanejas e andava aprendendo a dedilhar o violão que, no passado, pertencera a sua mãe. Brincalhão, chegava à venda de Maria das Graças Brito vasculhando as prateleiras. “Quero o perfume mais cheiroso para ir encontrar as meninas.” Continuava na área se tivesse algum adversário para uma partida de sinuca ou se um churrasquinho estivesse em curso do lado de fora.

Embora o desejo dos meninos fosse antigo, pouca gente soube da viagem com antecedência. Os dois queriam primeiro chegar aos Estados Unidos para depois espalhar que “ganhariam a América”. Hermínio estava tão confiante que escolheu um celular para a mãe pouco antes de ir embora. A ideia dele era facilitar o contato com os pais enquanto estivesse vivendo no Exterior. A propriedade da família Santos está fincada numa localidade conhecida como Córrego dos Firminos, no pé de um vale cercado de montanhas e eucaliptos, onde o cabeamento telefônico não alcança e sinal de celulares só é possível com a instalação de antenas especiais. Hermínio já tinha deixado o Brasil quando o problema havia sido resolvido. Mas, até agora, a família não recebeu nenhuma chamada do rapaz. Na memória de dona Maria, apenas as últimas palavras que ouviu do filho, no dia 3 de agosto: “Bença, mãe. Fica com Deus e com Nossa Senhora Aparecida. Se Deus quiser, chego lá são e salvo.” Depois de um longo abraço apertado, Hermínio botou a mochila nas costas e partiu.