Tom Jobim e Vinicius de Moraes espreitam os parceiros musicais Carlos Lyra e Roberto Menescal, das fotos penduradas nas paredes do Vilarino, tradicional bar e restaurante no centro do Rio de Janeiro, onde os autores de Garota de Ipanema se conheceram há mais de 40 anos. Lyra, Menescal e o diretor Paulo Thiago foram ao antigo templo da intelligentsia carioca, a convite de ISTOÉ, para trocar idéias sobre Coisa mais linda, documentário sobre a bossa nova, que entra em circuito nacional na sexta-feira 2. Ambos de cabeça branca, com os mesmos trejeitos despojados que marcaram o movimento nascido na zona sul do Rio, Carlos Lyra, 66 anos, e Roberto Menescal, 67, protagonizaram o filme como dois atores veteranos, passeando pelos pontos que viraram marcos históricos do gênero musical, como o Arpoador. “A bossa nova não foi criada, ela foi surgindo”, argumenta Menescal. “Não foi um movimento com manifesto. É a primeira vez em que a juventude brasileira se junta para fazer música”, completa Paulo Thiago, 59 anos, ex-aluno de violão de Menescal.

O cenário era a Copacabana e a Ipanema do final da década de 50. Com a
economia a todo vapor do governo Juscelino Kubitschek, o Rio exibia o título de capital federal. O verde dos morros ainda vicejava e as favelas não ameaçavam a segurança coletiva com o avanço do tráfico de drogas. Eram tempos paradisíacos,
do azul do mar e da luz do sol, quando a música brasileira deu um salto de qualidade. “Não é uma música do povo, mas popular de câmara, sofisticada. É besta, chamaram até de elitista”, descreve Lyra, referindo-se à rica bagagem dos músicos, influenciados por clássicos como Maurice Ravel e Claude Debussy e pelo jazz de Cole Porter a George Gershwin. Mas o elitismo não incluía o estilo pessoal. Muito pelo contrário. “Tiramos o paletó e a gravata da música brasileira”, resume Roberto Menescal, com jeito confessional e um tique no olho esquerdo que parece uma piscada de conquistador. Carlos Lyra disfarça a barriguinha proeminente com uma larga camisa pólo azul-marinho. Parece um garotão, simpático e sedutor, de jeans e tênis. Embora a bossa nova esteja em via de se tornar uma respeitável cinqüentona, Lyra se refere ao movimento que “foi e é”, respaldado pelos convites que já o levaram a oito temporadas de sucesso no Japão. Menescal perdeu a conta de suas apresentações no Exterior.

Alienação – O autor de Minha namorada, parceria de Lyra com Vinicius de Moraes, não disfarça certa irritação quando se lembra dos críticos que tachavam a bossa nova de alienada. “A economia era superestável, o general Lott impediu dois golpes militares, a política de Juscelino era democrática, e com isso a cultura só podia ir lá para cima”, teoriza. Para ele, era um momento tão favorável que deu origem ao cinema novo e à poesia concreta. Enquanto o cinema mostrava o que não se queria ver, a bossa nova sintetizava o que todos desejavam ser. “Éramos mais preocupados com o amor, o sorriso e a flor, o negócio era todo delicado, o culto da mulher, letras suaves, amorosas, românticas, com harmonia correta, melodia desenhada.” Menescal conta que Jobim se referia a Lyra como o engenheiro das melodias: “Nem sei se você sabe disso, mas Tom dizia que sua música era bonita de ler.”

Batida – Da mesma forma não didática do filme, o trio lembra que a batida da bossa nova nasceu da necessidade de tocar melhor uma música de maior complexidade harmônica. Já o canto ficou mais falado, porque a fossa dos boleros e sambas-canções foi substituída por letras mais complexas, cheias de metáforas e alegorias. “Cada um tinha uma batida e a de João Gilberto era a melhor, com mais mão direita que esquerda”, pontua Menescal. Gilberto inventou uma técnica que até hoje ninguém conseguiu imitar. Com o mais rigoroso perfeccionismo, ele avança e recua sobre a harmonia de forma a criar um resultado singular. Apesar dos convites, Paulo Thiago não conseguiu convencer João Gilberto a aparecer ao vivo no documentário. Suas cenas são todas datadas. “Ele é um monge, uma Greta Garbo. Foi um cara charmoso e hoje não quer mais aparecer diante das câmeras”, lamenta.

O papo segue regado a refrigerante e cafezinho, considerável mudança para quem era movido a cuba-libre e uísque. O filho de Thiago, Pedro Antonio Paes, garimpou tantas informações e imagens para Coisa mais linda que muitas ficaram de fora. Uma delas foi um depoimento de Claudete Soares, que fala de quando ela levou a bossa nova para São Paulo, em 1960. “Ela cantava em pé em cima do piano de cauda de Johnny Alf”, recorda-se o diretor, que também optou por retirar o comentário de Vinicius a Alf em uma barulhenta casa noturna na capital paulista: “O que você está fazendo aqui? São Paulo é o túmulo do samba.” Thiago garante que a irritação foi com o barulho, e não com a cidade. Para Menescal, o episódio acabou fazendo bem a São Paulo: “Nós criamos a bossa nova e os paulistas organizaram.” Quem saiu ganhando foi o Brasil. E o mundo.