O poeta tem razão: a alma do
Brasil está ferida. Histórico
admirador do PT do presidente Lula, Chico Buarque diz hoje que está
triste e que ainda gosta de Lula: “A
alma do brasileiro está ferida com os acontecimentos que eram mantidos no plano subterrâneo e agora estão aflorando.” E brinca, com uma ponta de melancolia: “Voltei a compor, mas não pretendo criar um samba para o mensalão.” É difícil mesmo ter inspiração diante de uma crise como essa, mais uma “página infeliz da nossa história”, como dizia o lamento de Chico em outros tempos difíceis no samba Vai passar. Não dá nem para arriscar e dizer quando a crise vai passar porque parece não ter fim. O presidente Lula avisa que não vai seguir os antecessores: nem dar um tiro no coração como Getúlio Vargas, nem renunciar como Jânio Quadros, nem ser deposto como João Goulart. Lula prometeu mirar-se no exemplo daquele presidente que mais admira: “Meu comportamento será como o de Juscelino Kubitschek: paciência, paciência, paciência.” Haja paciência, porque mesmo com seu governo andando como pato manco, seu PT é um “pote até aqui de mágoa”. Já transbordou e nos últimos dias o partido que ajudou a criar e do qual não pretende sair se digladia, numa brigalhada que preocupa, e muito, o Planalto. No centro do ringue estão os petistas chamados de moderados. Imaginem se não fossem.

Bomba – Há um mês e meio, Tarso Genro trocou o Ministério da Educação pela tarefa hercúlea de tentar tirar o enlameado PT do charco da corrupção. Quando telefonou para a deputada federal Luciana Genro (PSOL) e contou a novidade, a reação foi de filha preocupada: “Ih, pai, que bomba que tu pegou!”

Desde 9 de julho, quando substituiu José Genoino no leme do PT, Tarso
só colecionou derrotas. Não conseguiu unir nem os moderados, nem conquistar
a esquerda. Travou um duelo mortal com a imponente figura do ex-ministro da
Casa Civil José Dirceu, que se recusa a largar o osso petista, apesar de estar concentrado na sua defesa na Câmara. Luta para não perder o mandato de
deputado no processo de cassação por quebra de decoro parlamentar, devido às denúncias do mensalão. Dirceu foi o arquiteto da atual máquina partidária – que presidiu durante oito anos, exercendo forte influência na gestão de José Genoino. Mesmo com Tarso no leme petista, Dirceu continuou poderoso. Mas o ex-prefeito de Porto Alegre também não teve jogo de cintura para compor a unidade no divididíssimo PT. Como na canção Corrente, o gaúcho de São Borja resolveu fazer um samba bem pra frente, “dizendo realmente o que que eu acho”. Soltou a língua em debates públicos e constrangeu seus companheiros do Campo Majoritário, os tais moderados: atacou a política econômica, disse que o ministro Antônio Palocci (Fazenda) não seria seu candidato a presidente da República, caso Lula desistisse da reeleição. E, para estupefação geral, ainda admitiu que não teria hoje argumentos para convencer o eleitor a votar no PT em 2006. Lula chamou Tarso no Planalto na quarta-feira 24 para pedir moderação na língua e na briga com Dirceu. “Ele irritou o presidente Lula”, diz um palaciano.

Tiro na cabeça – Tarso tem dito que vive uma das piores fases de sua vida pública, e vem desabafando que está a um passo de largar tudo: “Posso viver um ano sabático”, comentou na segunda-feira 22, após o programa Roda Viva, da TV Cultura. Condicionou sua candidatura à presidência do PT na eleição interna de 18 de setembro à saída de cena de Dirceu. Seria um sinal para a sociedade de que o PT estaria rompendo completamente com os métodos e ações da antiga direção, responsável por toda a crise: a retirada do nome de Dirceu da chapa do Campo Majoritário, a ala que domina mais de 60% do Diretório Nacional, instância máxima do partido, composta por 83 pessoas. “Não vou renunciar à chapa. Se fizesse isso, o melhor seria dar um tiro na cabeça”, desafiou Dirceu, incorporando o velho guerrilheiro. Tarso avisou que renunciaria à candidatura: “Então não tem conversa. Não serei uma rainha da Inglaterra. Olha o que aconteceu com o Genoino. O partido precisa de uma ruptura.” Dirceu mandou a Tarso o recado de que a maioria do Campo Majoritário estava com ele. Tarso reagiu: “Quando ele fala pelo Campo Majoritário, isto mostra que a posição que eu defendo, de ruptura com o núcleo dirigente anterior, é correta. Agora, o Campo Majoritário vai ter de dizer à sociedade quem fala por ele.”

O governador do Acre, Jorge Viana, uma das poucas vozes da razão que sobram no PT hoje, desabafou: “Esses dirigentes têm de parar de atrapalhar. Está na hora de a gente se juntar, não de nos dividirmos. Para ajudar o País temos de consertar o partido.” O bate-boca entre Dirceu e Tarso reverberava no Planalto: “É preciso acalmar as duas prima-donas, que estão cantando alto demais.” Na quinta-feira 25, Tarso já dava sinais de que estava a um milímetro de desistir da contenda. O secretário-geral, Ricardo Berzoini, ganhou terreno nas articulações internas para substituí-lo. Ex-sindicalista, ex-ministro da Previdência e depois do Trabalho, Berzoini já era o nome preferido de Dirceu quando o PT se reuniu para escolher o sucessor de Genoino. Isso porque outros dois palacianos não quiseram encarar o pepino: o ministro Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência) e o assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia.

Qualquer um que pegar o abacaxi na mão terá que mostrar à sociedade que o PT pretende punir os culpados e, principalmente, romper com o passado. Tarso tentou, mas não conseguiu, aprovar nem uma mísera proposta que servisse como sinal para a irritada opinião pública. Foi voto vencido na proposta de suspender de suas funções partidárias o ex-tesoureiro Delúbio Soares, que admitiu ter usado dinheiro do caixa 2 do valerioduto. Sempre tão rígido com deslizes éticos, desta vez o PT foi bem maleável: não tomou nenhuma iniciativa. Esperou que o próprio Delúbio se dispusesse a ir à Comissão de Ética que poderá levá-lo à expulsão. Tarso também engoliu outra derrota: a cúpula não aceitou sua proposta de negar a legenda do PT aos parlamentares que renunciassem a seus mandatos devido às denúncias do mensalão. E para completar: não conseguiu levar os sete deputados federais envolvidos nas denúncias à Comissão de Ética do partido.

A lambança petista faz pensar, lembrando o poeta: “O que será, que será,
que andam combinando no breu das tocas?” Pesquisa Ibope divulgada na
quarta-feira 24 mostra que a opinião pública vê no PT o maior responsável pela
crise (29%) , mais ainda do que a Câmara dos Deputados (28%), do que Lula
(22%) e até dos partidos aliados (o PL, de Valdemar da Costa Neto, o PP, de José Janene, e o PTB, de Roberto Jefferson), que estão em quarto lugar na lista dos culpados, com 19%. Lula percebeu que o desmanche do seu partido o desmancha também: “Sou petista e tenho orgulho de ser petista. A justiça começa em casa.
Se companheiros nossos cometeram erros, eles terão que ser punidos, tanto
quanto se fossem inimigos.”

Gota d’água – Toda essa confusão poderia interessar apenas ao público petista, se não tivesse sérias conseqüências para o País. Lula teme que o sangramento de seu partido contribua para enfraquecer mais ainda o seu governo. E o PT se engalfinha justamente em um momento delicadíssimo em que Antônio Palocci, o homem forte do Planalto, está no olho do furacão. A esquerda tem três candidatos com potencial de retomar a rédea do PT e com isso fazer do partido uma metralhadora contra a política econômica: o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont, o terceiro vice-presidente do partido, Valter Pomar, e o ex-deputado federal Plínio de Arruda Sampaio. Ligado aos movimentos rurais e à Igreja Católica, Plínio vem ganhando apoios de amigos do peito de Lula, que já abandonaram o governo: o escritor Frei Betto e o empresário Oded Grajew. Como na música Apesar de você, na qual o poeta lamentava que a “minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão”, Frei Betto fez um desabafo: “Nem sob os anos da ditadura a direita conseguiu desmoralizar a esquerda como esse núcleo petista fez em tão pouco tempo. Esses dirigentes desmoralizaram o partido e respingaram lama por toda a esquerda brasileira.” Os petistas e o presidente Lula têm mais um motivo para se preocupar. Não podem nem mais contar com o apoio da Velhinha de Taubaté, a última pessoa do Brasil que acreditava em qualquer governo. Luis Fernando Verissimo, que a tornou famosa em suas crônicas, anunciou sua morte. A velhinha pediu para que deixassem em paz seu coração. Foi a gota d’água.