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A “desgracida” da mãe abandonou a filha ao nascer e quando a menina completou dez anos a quis de volta. Por quê?, quis saber a madrasta. “Agora já lava uma loucinha”, respondeu a mãe. O humor e a crueldade, marcas conhecidas do escritor paranaense Dalton Trevisan, são recorrentes nos contos de “Desgracida” (Record), que traz também cartas enviadas a amigos. Numa delas, para Otto Lara Resende, ele critica “Grande Sertão: Veredas” (Guimarães Rosa): é “a história menos plausível na literatura de travesti”.

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Leia abaixo alguns dos contos presentes no livro "Desgracida", de Dalton Trevisan


Ora Direis

—Ai, primeira vez nuinha. Só de salto alto. Puxa,
como é linda. Ver você e nunca, nunca mais morrer.
Olhe este peitinho.
—Cuidado. Que dói.
—Ui, tirar leite deste biquinho. Agora se vire. Não.
Assim. De novo.
Aquela confusão medonha.
—Deixe, amor. Só um pouquinho. Não se arrepende.
—Ai, não.
Desgracida de uma peticinha sestrosa.
—Tenho medo. Não quero.
Beijos molhados na penugem do pescoço — ó rica
pintinha de beleza.
—Posso me cobrir?
Santa vergonha de estar nua — a última virgem
de Curitiba.
—Ainda não. Quero você bem assim. Nos meus
braços.
Salto alto, a bundinha em riste. Seio de olhinho
aberto, um para cada lado. Ó vertigem da página em
branco.
—Tudo. Menos beijo. Na boca, não.
Ora direis, ouvir estrelas.

O Varredor

Entra ano
sai ano
e eu?
varrendo sempre
as mesmas folhas secas
das mesmas velhas árvores
nesta mesma cidade fantasma!

A Família

—Já vejo que o nosso patriarca está em plena forma.
E a família, como vai?
—Família assim numerosa. Sabe como é.
— …
—Tem sempre nos quartos uma gargalhada de
homem.
— ?
— E sempre alguma mulher chorando pelos
cantos!

Pobre Mãezinha

Os gêmeos voltam inquietos da escola. Primeira
aula de educação sexual. Seis aninhos, e já perdidos
na busca da verdade.
—Sabe, mãe, o que é transar? Então me diga.
A moça desconversa. Um jogo? um brinquedo?
uma ginástica? Reservado só para adultos. Mais tarde
eles… O pai pode explicar melhor.
Nem uma semana depois. O mais espevitado:
—Mãe, mãe, já sei o que é transar.
—E o que é, meu anjo?
—Transar é um menino beijar na boca de outro
menino!
A mãe se assusta com razão.
—Alguém fez isso com você?
O outro, tipo sonso:
— Ih, mãe. O carinha tá por fora. Não é nada
disso.
Sossega a moça, mas não muito.
De novo, os seis aninhos de sapiência nas ruas da
vida:
—Transar é o menino pôr o pipi na popoca da
menina!
A mãe queda muda. Você não conseguia definir
melhor.
Eis que o primeiro ensaia um choro sufocado, cada
vez mais doído.
—Meu Deus, filhinho. O que é agora? Por que está
chorando?
—É isso o que o pai faz…
Os pivetes se entendem num simples olhar (não
fossem gêmeos), e o segundo:
—…na minha mãe!
Já rompem violentamente aos soluços.
—É isso… Então é isso… Na minha pobre mãezinha!
Desesperados e inconsoláveis. E agora, mãezinha?
Só lhe resta abraçá-los e chorar com eles. Chorar
muito a inocência perdida de todos nós.