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A editora Solange Azevedo mostra o trabalho do Instituto Paternidade Responsável. Confira no player acima

 

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FAMÍLIA
Lucas é a cara da mãe, Danielle, mas se acha parecido mesmo é com o pai, Carlos

"Com quem você se parece?” Sempre que ouve essa pergunta, Lucas enche a boca e responde, todo orgulhoso: “Com o meu pai.” Carlos Miguel Jeremias tem pele morena, olhos pequenos e cabelos pretos. Lucas, não. Tem grandes olhos azuis, pele branquinha, bochechas rosadas e cabelos castanhos. É a cara da mãe. Danielle não se importa, acha graça da fantasia do filho. Ela sabe quanto a presença paterna é importante para o menino. Quando Lucas nasceu, em novembro de 2006, Danielle tinha 17 anos. Carlos, 15. O namoro acabara no oitavo mês de gestação. “Eu não podia mais sair, ir à escola. Ficava revoltada porque minha vida tinha desmoronado e a dele continuava normal”, conta Danielle. “Éramos imaturos, brigávamos muito. Então, decidi terminar.” Carlos lembra que, com o rompimento, achou que o compromisso com a criança também havia chegado ao fim. “Não queria registrar o Lucas. Pensei que isso estragaria o meu futuro, os meus estudos e que, ser pai, fosse ruim.”

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CINEMA
Susanna lançará um filme sobre a ausência paterna e contará a própria história

Carlos acabou se dando conta de que não deveria se esquivar quando foi chamado pelo Instituto Paternidade Responsável – uma organização não governamental que fomenta o comprometimento de pais e mães com o bem-estar dos filhos e o reconhecimento formal na certidão de nascimento. O rapaz revela que a audiência de conciliação foi fundamental para despertar sua consciência. “Me explicaram que eu deveria estar sempre presente na vida do meu filho porque, senão, ele poderia crescer revoltado. E que registrar o Lucas não me afetaria em nada”, afirma. Carlos, hoje com 19 anos, temia não saber educá-lo nem poder sustentá-lo. “Mesmo vendo a barriga da Danielle crescer, a ficha não tinha caído. Mas, no dia em que peguei o Lucas no colo, senti um frio na barriga e uma moleza nas pernas. Foi uma emoção que umedeceu minhas vistas”, relata. A postura de Carlos mudou tanto que, quando Lucas completou 3 meses, Danielle aceitou reatar o namoro – em junho do ano passado, eles se casaram.

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Sem a intervenção do Instituto, Lucas engrossaria a massa de cidadãos não reconhecidos pelos pais. Estima-se que, pelo menos, sete milhões de crianças e adolescentes estejam nessa situação. Enquanto menos de 2% dos franceses têm apenas o nome da mãe no registro de nascimento, esse índice chega a 25%, em média, entre os brasileiros. Na região de Lages, serra catarinense e berço do Paternidade Responsável, é de 17%. A situação no Brasil é tão grave que, no início de agosto, o corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, determinou que tribunais de todo o País convoquem as mães de crianças e adolescentes não reconhecidos para que elas apontem (caso desejem) os pais. A ideia é que esses homens sejam intimados e, se necessário, submetidos a testes de DNA. Ao baixar essa medida, o corregedor espera que os tribunais cumpram uma função que lhes é atribuída por lei desde 1992.

Em inspeções feitas pelo País, a Corregedoria constatou que poucos tribunais se dedicam a combater esse problema. De tempos em tempos, alguns juízes se unem em mutirões ou tomam iniciativas pontuais. São Paulo – onde as ações são permanentes – obteve 30,4 mil indicações de supostos pais nos últimos três anos. Segundo Hamid Bdine, juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado, 18,1 mil crianças e adolescentes foram reconhecidos voluntariamente nesse período. Entre 2002 e 2009, o Ministério Público do Distrito Federal chamou 19 mil mães – 23% dos filhos conseguiram o reconhecimento. São iniciativas importantes, mas que, em geral, terminam quando uma nova certidão de nascimento é emitida. “Esse é o diferencial do Instituto”, afirma o juiz Sílvio Orsatto. “A nossa atuação vai além do registro. Focamos na educação, na prevenção e no fortalecimento dos vínculos de afetividade.”

O Instituto já atuou em mais de 900 reconhecimentos – 50% sem necessidade de exame de DNA. Esses casos foram resolvidos em audiências de conciliação, não viraram processos judiciais. Se tivessem ido parar na Justiça, Santa Catarina gastaria R$ 9 milhões. “Uma ação de investigação de paternidade custa R$ 10 mil, é demorada e tem um caráter litigioso que faz mal à criança. Para juiz, promotor e advogado, meses ou anos podem não fazer diferença. Mas, para o filho, essa espera é contada em minutos”, garante Orsatto. “O objetivo do Instituto é que o pai tenha uma visão mais clara do seu papel, e não que cumpra apenas a função de provedor.”

Para disseminar esse conceito de pai contemporâneo, a equipe do Instituto visita escolas públicas, bairros de Lages e municípios do entorno. Também debate com professores e alunos, orienta agentes comunitários, médicos e enfermeiros a abordar o assunto com gestantes e futuros pais. Faz teatro de fantoches e concursos de desenho e redação. “Já atingimos mais de 32 mil alunos. Um deles desenhou o pai num caixão. Apesar de estar vivo, era aquilo que o pai representava para ele”, afirma a socióloga e advogada Rita Lang, coordenadora do Instituto. “Ser pai não é jogar uma criança no mundo.”

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Essa noção mais ampla de reconhecimento a que Orsatto e Rita se referem tem sido analisada por filósofos, cientistas políticos e sociais nos últimos anos. O pensador canadense Charles Taylor acredita que a construção da identidade de uma pessoa passa pelo reconhecimento dos ascendentes e que essa ausência pode ser devastadora. Tanto que sete de cada dez presos em Santa Catarina cresceram sem pai, assegura Orsatto. O filósofo alemão Axel Honneth enfatiza que o reconhecimento engloba três esferas: a do amor, a do direito e a da solidariedade. Sem essa vivência completa, segundo ele, ninguém seria capaz de constituir uma identidade verdadeiramente estável.

“Fica um trauma”, lamenta Joel Albano, 36 anos. Joel foi educado sem pai e, há duas semanas, decidiu reconhecer o filho de 11 anos. O menino ganhou uma nova certidão de nascimento e um nome mais comprido: Ranieri de Jesus Albano. “Eu precisava cortar esse mal que tanto me perseguia”, afirma Joel. “Parece um mal que passa de pai para filho. Me criei sem pai. Meu filho foi criado sem pai. Daqui a pouco, ele vai ter um filho que vai ser criado sem pai.” Joel e Ranieri vivem em Lages, no mesmo bairro, mas não se cumprimentam e desviam o olhar quando se encontram na rua. “Vou tentar me aproximar dele, acompanhar no colégio. Achei que isso ia me estorvar. Mas, na verdade, vai ser um benefício para mim e para ele”, acredita Joel.

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Joel assumiu o filho de 11 anos. No Instituto Paternidade Responsável, assinou
os papéis para que o menino ganhasse uma nova certidão de nascimento

Para a socióloga Ana Liési Thurler, autora do livro “Em Nome da Mãe. O Não Reconhecimento Paterno no Brasil”, trata-se de “uma violência contra filhas e filhos e mulheres-mães”. O não reconhecimento é herança das relações coloniais e patriarcais e suas raízes históricas estão fincadas no poder da Igreja Católica. “Aqui, vigorou o registro do vigário, com o batismo. A Igreja, secularmente, não permitiu a inclusão do nome do pai no registro da criança nascida fora do casamento. A possibilidade de ter pai, para essas crianças, estava excluída”, lembra Ana Liési. “Para o Direito Canônico, o casamento era e é um sacramento indissolúvel, instituidor do pai. Concílios afirmaram firme e formalmente serem sementes malditas as crianças nascidas fora do casamento legítimo.” Isso vigorou até a criação do Registro Civil de Nascimento, em 1888. A lei brasileira, porém, só admitiu a igualdade entre os filhos – tidos no casamento ou fora – a partir da Constituição de 1988.

De cada três pessoas nascidas no Brasil, uma vem de um casamento, outra de uma relação estável e a terceira de um relacionamento eventual. A carioca Susanna Lira, 38 anos, é fruto de um namoro de dois meses. Durante três décadas, ela achou que convivia bem com a falta paterna. Só quando deparou com um vazio na árvore genealógica que a filha fez na escola percebeu quanto aquilo a incomodava. As únicas informações que ela tem sobre o pai são de que ele é equatoriano e foi militante político nos anos 70 no Rio de Janeiro. “Ele usava nome falso. Não tenho sequer uma foto. A imagem dele é uma vaga lembrança na memória da minha mãe”, afirma Susanna. No fim do ano, ela lançará “Nada Sobre Meu Pai”, um documentário sobre histórias de abandono. “Sou construída pela ausência. Há um buraco que precisa ser preenchido”, diz. “O meu desafio no filme é mostrar de uma maneira amorosa, não vingativa, que pais não são descartáveis.”


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ANGÚSTIA
Roger pensou em contratar um detetive para procurar pelo pai

O pouco que Susanna sabe vem da infância. “Minha mãe nunca me escondeu nada. Se eu tivesse sido enganada, seria bem pior”, avalia. Muitas mães têm a ilusão de que mentir é a melhor forma de lidar com os questionamentos dos filhos. “Descobri que meu pai não tinha morrido quando tinha 21 anos”, relata o microempresário paulista Roger Santos. “Uma tia me viu de cavanhaque e disse que eu estava muito parecido com ele.” Daquele momento em diante, Roger afirma não ter deixado de pensar no pai um único dia. Aos 38 anos, órfão de mãe e de padrasto e superpai de três filhos, ele acha que chegou a hora de vasculhar o passado. Sua mãe era comissária da Viação Cometa, numa época em que os ônibus de viagem ofereciam serviço de bordo. Trabalhava principalmente nos trajetos São Paulo-Rio e São Paulo-Campinas. “O nome dela era Graça. Mas muita gente a chamava de Gracinha. O do meu pai é Sérgio. Ele fazia pontas em novelas da Tupi, era conhecido como Gaúcho. Os dois costumavam se encontrar no Largo do Arouche”, diz Roger. “Cresci num lar feliz, estruturado. Mas isso me perturba muito. Todas as vezes em que encontro um senhor de barba na rua, fico pensando: será que ele é o meu pai?”


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