Diretor da SPFW impõe regras contra magreza das modelos

O sedutor ambiente fashion não pode ser abalado novamente por casos como o da modelo Ana Carolina Reston, que morreu em novembro passado vítima de anorexia e bulimia. E, se depender dos esforços de Paulo Borges, diretor da São Paulo Fashion Week, a maior plataforma de lançamentos da moda na América Latina, isso dificilmente voltará a acontecer. Após uma série de discussões com representantes das agências, ele decidiu, entre outras coisas, proibir modelos com menos de 16 anos de desfilar na festa e exigir atestados médicos renovados periodicamente para abrir às meninas o caminho das passarelas e dos holofotes. A primeira das duas edições anuais da SPFW 2007 será realizada entre os dias 24 e 29 de janeiro no prédio da Fundação Bienal de São Paulo, dentro do Parque do Ibirapuera. Nesta entrevista a ISTOÉ, Paulo Borges detalha as medidas e fala sobre suas preocupações com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Modelos com menos de 16 anos não desfilam mais na SPFW?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Nos desfiles adultos, em passarela, não. Estão vetadas. A decisão está tomada.
ISTOÉ – ISTOÉ ? Nenhuma delas quis bater no sr.?
Paulo Borges – Paulo Borges ? (Rindo) Imagino que não. Pelo menos não recebi nenhuma ameaça. Mas a medida, de fato, provocou alguns impactos importantes. Só para se ter uma idéia, se considerarmos apenas a São Paulo Fashion Week, essa linha de corte vai tirar das passarelas 15 ou até 18 modelos que desfilaram na Semana no ano passado. Dessas, pelo menos cinco possuem carreira internacional, com desfiles elogiados na Europa e nos Estados Unidos. Uma delas veio com a certidão de nascimento na mão. Fará 16 anos na semana seguinte ao término do evento. Mas não deu para dizer outra coisa a não ser: ?Infelizmente, não será possível.?
ISTOÉ – ISTOÉ ? Por que tanto rigor?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Isso faz parte de um conjunto de medidas proposto pela organização da Semana. Ele foi definido em vários debates com as agências de modelos. Em novembro passado, quando a modelo Ana Carolina Reston morreu, vítima de anorexia e bulimia, a maioria dos meios de comunicação apressou-se em acusar todas as agências de jamais terem se preocupado com o problema. Isso é uma combinação cruel de exagero e desconhecimento. As principais agências mantêm há mais de seis anos parcerias com médicos, nutricionistas e psicólogos para o atendimento das meninas. Poderemos encontrar uma ou outra que não tenha essa preocupação, mas os agenciadores sérios sempre estiveram atentos. Anorexia e bulimia não são problemas do mundo da moda, mas das sociedades. De qualquer maneira, nós, do setor, precisamos fazer nosso mea-culpa. Ana Carolina era uma modelo de ensaios fotográficos, e não de passarela, como as que desfilam na SPFW. De qualquer forma, o caso nos incentivou a estabelecer regras e a lançar projetos de educação sobre o assunto.
ISTOÉ – ISTOÉ ? E quais são essas medidas?
Paulo Borges – Paulo Borges ? A primeira delas é o limite de idade. Achamos que, antes dos 16 anos, o melhor para essas meninas é estar em contato com suas famílias, recebendo formação dentro de casa e nas escolas. Além disso, dos 11 aos 15 anos, elas crescem e emagrecem muito rapidamente, além de passar por alterações hormonais e processos de consolidação do ciclo menstrual. Os especialistas não aconselham que essa fase seja combinada às pressões de um mercado profissional e competitivo como o da moda.
ISTOÉ – ISTOÉ ? E a segunda regra?
Paulo Borges – Paulo Borges ? É a exigência de um atestado médico, que será atualizado periodicamente e mostrará as condições de saúde das modelos. Funcionará como uma espécie de brevê das condições clínicas das meninas, sobretudo nas relações cotidianas com as agências. Como esse documento será atualizado por consultas e conferido em espaços curtos de tempo, dois ou três meses, a possibilidade de se identificar problemas aumentará radicalmente. Além disso, reforçamos o controle de confirmação de uma exigência antiga: o atestado de emancipação ou a autorização dos pais, com aval judicial, para que as meninas entre 16 e 18 anos possam trabalhar.
ISTOÉ – ISTOÉ ? O sr. acha que essas medidas foram tomadas a tempo?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Dentro das circunstâncias, sim. Diria até que, no mundo, fomos os primeiros a reagir seriamente. Aliás, enquanto não havia uma reação organizada, a imprensa nos acusava de alienados e comprometidos. Aí a gente tomou uma atitude e foi tachada de fazer marketing. Acho engraçado, gostaria de entender. Depois da morte de Ana Carolina, a SPFW, que recebe cerca de 400 modelos em cada uma das suas duas edições anuais, foi a primeira semana de moda importante do mundo a vetar modelos com menos de 16 anos e a exigir esses avais médicos periódicos para liberar o trabalho das meninas. A semana de Milão seguiu nossa decisão e estabeleceu o mesmo limite de idade. A de Nova York pediu cópias do projeto para análise e repassou várias de nossas decisões como recomendações a agências e modelos. A Fashion Rio, que terminou nesta semana, também adotou nossas propostas.
ISTOÉ – ISTOÉ ? E as atitudes educacionais, quais são?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Elas fazem parte de um projeto que realmente me empolga. A SPFW será realizada de 24 a 29 de janeiro. Antes do primeiro desfile, todas as modelos serão reunidas para um dia de palestras e discussões sobre anorexia, bulimia e todos os outros riscos de saúde a que elas estão expostas. No mesmo dia, todas elas receberão uma cartilha, escrita em linguagem jovem e acessível, sobre a necessidade de manter a auto-estima e não colocar a saúde em risco. Essas questões médicas estão incluídas na cartilha, organizada pela jornalista Bel Kranz com a ajuda de especialistas.
ISTOÉ – ISTOÉ ? Isso é tudo?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Não. Ainda no primeiro semestre deste ano faremos uma segunda etapa de palestras e de distribuição de cartilhas, desta vez para os pais e familiares das modelos. Esteja certo de uma coisa: esse processo de conscientização não terá a menor possibilidade de caminhar sem que os pais conheçam e ajudem a combater as posturas erradas que surgirem. Anorexia e bulimia, por exemplo, são processos lentos, graduais. Os pais têm mais chance de identificar, ou pelo menos de desconfiar, se a filha está nesse caminho. Na maioria dos casos, podem ser os primeiros a dar o alerta e a tentar colocar as coisas no rumo certo. Lembra do sentimento de culpa da mãe de Ana Carolina por desconhecer os processos que causaram a morte da filha? Informada, ela poderia ter ajudado. Por fim, teremos uma terceira etapa, com ações semelhantes, voltada para o ambiente das escolas.
ISTOÉ – ISTOÉ ? O sr. não teme que as modelos tragam atestados de saúde adulterados? Não seria mais seguro as agências fazerem o controle médico com profissionais próprios?
Paulo Borges – Paulo Borges ? No futuro talvez, mas o processo está no início. Por enquanto, é o que as agências e os realizadores podem fazer. Acho também que é hora de clamar pela responsabilidade das modelos, dos pais, da imprensa, enfim, de todos nós.
ISTOÉ – ISTOÉ ? No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar, as modelos parecem colocar tudo em jogo, inclusive a saúde, para dar certo…
Paulo Borges – Paulo Borges ? Não sei se podemos afirmar isso. Em relação aos problemas com anorexia e bulimia, por exemplo, me parece igual em todo o mundo. O que posso identificar é o que leva tantas brasileiras a fazer um sacrifício descomunal pelo sucesso nas passarelas. A carreira de modelo internacional é o equivalente feminino do futebol para os nossos meninos. Hoje, há 25, 30 brasileiras no primeiro time das top models mundiais. Gisele Bündchen, Adriana Lima, Isabeli Fontana… a lista é longa. Ganharam dinheiro, status, reconhecimento, holofotes, poder. Representam a reunião do melhor que pode haver neste mundo: sucesso, beleza e dinheiro. Elas conseguiram isso vindas de um país que, teoricamente, daria chances menores em outros setores do que as nações desenvolvidas. Isso reforça ainda mais o papel da moda como atalho para o estrelato. Para muitas meninas da classe média, e sobretudo das mais necessitadas, esse apelo se torna irresistível e justifica qualquer esforço.
ISTOÉ – ISTOÉ ? A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o Índice de Massa Corpórea (IMC) de 18 o limite da desnutrição. Pouco antes da morte de Ana Carolina, os organizadores da Semana de Moda de Madri proibiram modelos com IMC menores do que 18 de participar do desfile. O que o sr. acha da medida?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Não quero nem tenho conhecimento técnico para questionar esses critérios científicos, mas, sinceramente, acho a proibição baseada exclusivamente neste índice exagerada e pouco inteligente. Ela desconsidera aspectos importantes e históricos da atividade. Gisele Bündchen, o maior símbolo de alegria, beleza, exuberância e profissionalismo nas passarelas do mundo na atualidade, tem IMC um pouco menor do que 18. E, para quem não sabe, uma informação: ela come como uma louca.
ISTOÉ – ISTOÉ ? E essa história de a SPFW adotar bandeiras como a do desenvolvimento sustentável, da inclusão social e do respeito ao meio ambiente?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Defender causas importantes faz parte de nossa tradição. Nos 11 anos de existência da Semana, solidificamos a campanha Fashion Target, do câncer de mama no alvo da moda, defendemos o consumo consciente e ajudamos o governo federal a alertar os jovens sobre a necessidade de se fazer o exame de HIV-Aids. A sustentabilidade não é o tema da SPFW 2007, mas um caminho que iremos explorar na próxima década. O pano de fundo específico desta edição de janeiro é a importância da preservação das matas.
ISTOÉ – ISTOÉ ? O que vocês irão fazer nesta edição?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Todo o cenário, idealizado por Daniela Thomas, será de papelão reciclável, a exemplo do que ocorreu no ano passado. A estrutura, evidentemente, não é de papelão, mas usaremos um material que poderá ser desmontado e guardado. Além disso, com a ajuda de ONGs como a The Green Iniciative, que é envolvida com o mundo da moda, calculamos a quantidade de dióxido de carbono, o CO2, que lançaremos na atmosfera para realizar a Semana. Descobrimos que, para compensar essa emissão, precisaremos plantar cinco mil árvores na Mata Atlântica. E vamos fazer isso. Durante o desfile, haverá computadores disponíveis ao público para quem quiser descobrir o impacto de seu consumo pessoal no meio ambiente. Além disso, teremos uma exposição com roupas de 11 estilistas famosos, todas feitas com materiais alternativos ou recicláveis como pet e couro de peixes.
ISTOÉ – ISTOÉ ? O sr. acha mesmo importante tomar atitudes como essa?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Isso é fundamental. E deveria ser agregado ao valor do produto do design de moda nacional para exportação. Eu nunca vou poder dizer que o design brasileiro é mais bonito do que o francês ou mais elegante do que o italiano. São questões de gosto e de valores. Mas poderei, sim, dizer que aqui é o único lugar onde o design pode ser integralmente sustentável. O ambiente brasileiro poderá ser assim. O País precisa ser percebido mundialmente dessa forma e isso terá um imenso valor para o setor.
ISTOÉ – ISTOÉ ? Tente ser imparcial: qual é a verdadeira importância da São Paulo Fashion Week no calendário mundial das semanas de moda?
Paulo Borges – Paulo Borges ? Hoje ela é respeitada e comentada no cenário internacional de moda. A imprensa especializada mundial e as próprias pessoas envolvidas nas semanas de Paris, Milão e Nova York reconhecem e atestam isso. Nós desenvolvemos um projeto de apresentação da moda brasileira com qualidade internacional, mas sem perder o que há de interessante e original na rotina e na expressão de nossos criadores. A moda, que é o principal setor de geração de emprego para as mulheres, passou a ser mais respeitada. O tratamento dado pela imprensa aos profissionais da área ainda carece, em alguns setores, de um respeito maior, mas de maneira geral melhorou de forma astronômica. Na primeira edição da SPFW, há 11 anos, o Brasil contava, pelas informações que tenho, com três faculdades de moda. Hoje tem mais de 30, muitas delas com mestres e até doutores realizando pesquisas e estudando novos caminhos. Evidentemente nós não construímos tudo isso sozinhos. Mas é impossível não reconhecer que tivemos um papel importante.