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A faxineira Raimunda da Silva Gonçalves, 46 anos, é o estereótipo de uma parcela da população brasileira que vem buscando melhorar de vida há mais de cinco décadas. Ela, como milhões de seus pares, migrou de uma pobre cidade nordestina no início dos anos 80 para buscar sorte melhor na riqueza do caos paulistano. Chegou sem ocupação definida, analfabeta e com pouca perspectiva de subir muitos degraus na conservadora pirâmide social brasileira. Em São Paulo, Raimunda casou-se com outro migrante, teve dois filhos e estacionou socialmente. De casa em casa, de faxina em faxina, permaneceu analfabeta, pobre e sem dinheiro para ter nada mais que o essencial.

Nos últimos cinco anos, no entanto, a história de Raimunda começou a mudar. Seu poder de compra foi crescendo e, aos poucos, ela começou a ter acesso a luxos antes impensáveis. Abriu até uma poupança e, há dois anos, obteve sua maior conquista: conseguiu erguer uma pequena casa de alvenaria na cidade-dormitório de Itapecerica da Serra. Aos filhos Raimunda tem conseguido dar a chance de subirem ainda mais na vida. O mais velho deles, Rodrigo, 19 anos, está cursando administração de empresas em uma universidade particular. O mais novo, Vitor, 11 anos, matriculou-se recentemente em um curso de inglês. “Aprendemos com a vida que sem estudo nada se consegue”, diz ela. “Os meninos sabem disso, eles veem isso e estão aproveitando uma oportunidade que eu e o pai deles nunca tivemos.” Na esteira da formação dos filhos, até Raimunda resolveu estudar. Já deixou para trás o analfabetismo e, agora, sonha um dia conseguir chegar à universidade. No ano passado conquistou seu primeiro diploma: concluiu o primeiro grau, aos 46 anos de idade.

Raimunda conseguiu mudar seu padrão de vida não só pelos seus espetaculares esforços pessoais. Sem o alicerce econômico alcançado pelo País nos últimos 15 anos, talvez pouco adiantaria seu empenho. Como muita gente, ela pôde ganhar mais dinheiro porque o Brasil vive um momento excepcional. Em cinco anos, 32 milhões de pessoas, o equivalente à metade da França, ascenderam socialmente. O fenômeno mais impressionante ocorreu com a antiga classe média baixa, hoje chamada de classe C, que se multiplicou e passou a representar a metade da população do País. Cerca de 90 milhões de brasileiros agora possuem renda familiar mensal entre R$ 1.115 e R$ 4.807 e se tornaram uma força tão poderosa que já é apontada por alguns especialistas como a classe dominante, no sentido econômico. Com o R$ 1,3 mil que ganha fazendo faxinas nas casas de classe média alta de São Paulo, Raimunda passou a fazer parte dessa nova força econômica.

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A classe média se impõe, ávida para liberar um desejo de consumo represado por décadas. Para medir na prática esse anseio, a agência de publicidade McCann Erickson encomendou pesquisa ao instituto Data Popular em seis capitais brasileiras e descobriu que 80% dos consumidores da classe C disseram que “não dá para viver sem” computador, 60% das famílias têm DVD, 66% querem comprar um celular com câmera fotográfica e 82% possuem tecnologias que melhoram o entretenimento e lazer da família. De acordo com o especialista em finanças, Amir Khair, a renda média da classe C subiu 13%, em 2008.

Mais do que desejos, essa nova classe C tem um poder de consumo inigualável no Brasil. De acordo com um estudo da mesma Data Popular, hoje a renda reunida desses 90 milhões de famílias soma quase R$ 500 bilhões. Hoje, mais de 80% dos cartões de crédito que circulam no País estão nas mãos deles, que são responsáveis por 76% do consumo no Brasil. A estimativa é de que os indivíduos desse segmento social já respondam por 80% de todas os brasileiros que usam a internet cotidianamente. “Hoje temos mais de mil lojas, com R$ 18 bilhões de faturamento, voltadas exclusivamente para a classe C. Por ano, vendemos para eles 4,5 milhões de eletrodomésticos da linha branca, 4,7 milhões de celulares, 1,6 milhão de tevês e 2,2 milhões de aparelhos de som”, conta Michel Klein, presidente da Casas Bahia.

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É o que o professor da Universidade de Cornell, Stuart Hart, chama de inversão da pirâmide de consumo. Para ele, compreender e mergulhar nesse mercado será determinante para todas as empresas do mundo. “Hoje, em todo o planeta, 4,5 bilhões de pessoas são o que podemos chamar de consumidores emergentes. Quem não entender essas pessoas e não trabalhar diretamente com elas está fadado a não crescer”, diz ele, que esteve no Brasil na última semana para discutir esse tema.

“Há uma demanda por bens e serviços que antes essa camada nem sonhava”, diz o cientista político Amaury de Souza. Para ele, a classe C passou a ter os mesmos desejos das classes A e B, com uma ressalva, ela é um contingente muito maior. Enquanto o primeiro representa 44% da renda nacional, o da nova classe média totaliza 47%. “O desejo de mobilidade social é enorme. E isso não é novo. A novidade é a escala. O processo que permitiu a mobilidade de milhões de pessoas é muito recente”, diz Souza.

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Na opinião dos especialistas, o crescimento do poder aquisitivo da classe C só ocorreu graças ao aumento da escolaridade nos últimos 20 anos, ao controle da inflação com o Plano Real e ao acesso ao crédito nos últimos seis anos. Desde que o Banco Nacional da Habitação (BNH) quebrou, na década de 80, os brasileiros não tinham acesso ao crédito imobiliário. Somente no primeiro semestre deste ano, com os recursos da caderneta de poupança, foram emprestados R$ 23,8 bilhões. Se comparado ao PIB, o volume ainda é inexpressivo, mas representa 77% do que foi emprestado no mesmo período do ano passado. O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, calcula que até 2016 a demanda da classe C será por 10,4 milhões de imóveis. “A classe média popular vai dominar o mercado residencial brasileiro nos próximos anos”, diz Vale.

Sandra Maria Sabino Bertoldo, moradora do Morro dos Prazeres, no Rio de Janeiro, faz parte desse contingente. Nascida e criada em uma das favelas mais castigadas pelas chuvas do início do ano, seu sonho é comprar uma casa longe dali. Até lá, no entanto, Sandra e o marido, o servente de pedreiro Airton Souza dos Santos, estão empenhados em ter mais conforto onde vivem. Há poucos meses compraram uma tevê de LCD de 32 polegadas e um fogão de seis bocas, bens até pouco tempo impensáveis para eles. “Posso até dizer que eu sou madame, a madame dos Prazeres”, ri Sandra, 46 anos e cinco filhos. “Vamos conseguir trocar de casa, as coisas melhoraram muito nos últimos anos.” 

Ao lado da renda e do crédito, a carteira de trabalho também é uma das grandes conquistas da classe C. Há cinco meses, dados do IBGE mostraram que, pela primeira vez em 16 anos, metade (50,7%) dos trabalhadores nas principais capitais teve a carteira de trabalho assinada. Uma demonstração de que o empresário brasileiro continua apostando no desempenho da economia nacional. Do contrário, não arriscariaformalizar seus empregados com a burocracia da legislação trabalhista para as demissões. No entanto, o sociólogo Rudá Ricci, que acaba de lançar o livro “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira”, tem uma preocupação. Ele calcula que, para a classe C continuar crescendo, ela precisa de um ambiente favorável ao empreendedor que exige uma reforma tributária, que o Brasil ainda não tirou do papel. “Existe uma bolha de consumo. As pessoas estão endividadas e essa ascensão não será sustentável se não houver uma mudança na estrutura do mercado de trabalho”, diz. 

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Doutor em sociologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Osório não concorda com os temores de Rudá Ricci. E descarta a tese de riscos à sustentabilidade da classe C. “Vamos crescer com distribuição de renda. As novas gerações estão chegando mais educadas ao mercado de trabalho. No Brasil, o prêmio do diploma está menor, a competição está menor, há aumento da renda domiciliar per capita, queda na desigualdade e não há nada que indique que não vamos continuar assim nos próximos dez anos. Estamos consolidando o estado de bem-estar social. É o capitalismo meritocrático”, diz Rafael Osório.

Nesse capitalismo nada selvagem, pesquisa da Fecomercio-SP mostra que as perspectivas são de que o consumo da nova classe média nos próximos dez anos se tornará cada vez mais sofisticado. O assessor econômico da Federação Fábio Pina alerta, contudo, para a necessidade da qualificação da mão de obra, para inovações tecnológicas e investimentos em capacitação e modernização do setor produtivo para evitar um crescimento com inflação. “Até 2020, os principais responsáveis pela lucratividade das empresas serão os consumidores das classes C, D e E”, diz.

A operadora de telefonia móvel TIM já percebeu isso. Após atacar de forma agressiva esses segmentos no mercado de celulares, a companhia quer agora conquistá-los em um dos setores que prometem explodir nos próximos anos: o acesso à internet. A ideia da companhia italiana é fazer com que os usuários que frequentam as mais de 100 milk lan houses no Brasil as troquem por seus serviços. Um cliente de lan house paga, na média, R$ 2 para navegar meia hora ou uma hora e vai várias vezes por semana. Seu gasto mensal é de R$ 30. Nosso desafio será lançar aparelhos compatíveis com a renda desse pessoal, parcelados em 12 vezes”, diz Lorenzo Lindner, diretor nacional de vendas da operadora italiana.

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Além de preço, Linder aposta nesse sentimento de bem-estar que toma conta de uma parcela da população acostumada a viver espremida entre o salário curto e os meses longos. Pesquisa da Gallup World Poll, em 132 países, mostra que os brasileiros acreditam que estarão mais felizes daqui a cinco anos. Ao responder à pergunta “Dê uma nota de 0 a 10: onde você espera estar daqui a cinco anos?”, a média brasileira foi de 8,78, a maior entre todos os países pesquisados.

Colaboraram: Natália Leão, Fabiana Guedes, Larissa Veloso, Wilson Aquino e Yan Boechat