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O lago Lamo Ltaso, no Tibete, batizado pelos budistas como Lago das Visões, fica incrustado entre três montanhas sagradas, a 5,4 mil metros de altura. Reza a tradição que naquele espelho de água gelada mora Pelden Lamo, entidade protetora que teria o poder da revelação: é ela, por exemplo, que permitiria identificar em qual criança Buda se reencarnará. Em 1994, ao fazer a sua terceira viagem àquele país ocupado pela China há quase meio século e hoje considerado uma região autônoma, o fotógrafo carioca Marcos Prado por pouco não presenciou esse ritual ao qual só alguns lamas têm acesso. Prado cruzou com esses monges no caminho em direção ao lago onde eles teriam visões sobre como encontrar uma criança especial, de seis anos. Esse menino seria a reencarnação de Pachen Lama, a emanação do Buda da Luz Infinita, morto justamente seis anos antes. O encontro do fotógrafo com essa comitiva deu-se após uma viagem a pé de dois dias, seguida de uma caminhada de oito horas pelas montanhas – Prado quase morreu congelado. “Viajava sozinho, sem cabana e com pouco alimento. À noite a temperatura caiu para 15 graus negativos. Fui socorrido por uma família que me deu sopa quente e me envolveu com seus pesados casacos de pele de yaks (tipo de boi)”, diz ele, mundialmente famoso por seus premiados ensaios sobre carvoeiros e sobre o lixão de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, que deu origem ao documentário Estamira.

A peregrinação até o lago-oráculo e as fotos que Prado fez desse lugar impregnado de misticismo aparecerão com destaque no livro que lançará no fim do ano com o título Tibete – o Tibete pode ser salvo. A idéia do fotógrafo, que se dedica atualmente apenas à produção de filmes (é o produtor de Tropa de elite, entre outros), era lançar o volume durante a Olimpíadas de Pequim como forma de chamar a atenção para o massacre cultural de que são vítimas os tibetanos. Mas a maioria dos patrocinadores não se animou: apoiar o livro seria comprar uma briga com o governo chinês. Entre as 90 fotos, não faltam provas dos estragos dessa ocupação. Data de 1986, ano de sua primeira viagem ao país, a vista geral que Prado fez do mosteiro de Ganden, o maior conjunto religioso do Tibete. A foto mostra um gigantesco emaranhado de ruínas decorrentes de violentos bombardeios. Lá viviam quatro mil monges, número reduzido para 300 na época em que ele fotografou o mosteiro. “Para ninguém perceber que o lugar era tão grande, os chineses mandaram remover todas as ruínas”, diz ele. “Mas eu consegui fotografa- las antes disso.”

Segundo o fotógrafo (que após suas viagens ao Tibete visitou e retratou o Dalai Lama em Dharamsala, na Índia), a estratégia do governo chinês é provocar uma miscigenação do povo tibetano com representantes da etnia chinesa han. Nessa calculada dominação, até mesmo o novo Pachen Lama, a criança anunciada em 1994, teria sido seqüestrada e trocada por um garoto chinês. Mas a cultura local resiste em flagrantes que Prado documenta com objetividade e reverência, caso do retrato de um monge no momento de sua oração, no mosteiro de Sera. Em outro monastério, o de Drigun Til, ele documentou um ritual fundamental do budismo, que é a entrega dos mortos aos abutres sagrados. Nessa cerimônia fúnebre, o corpo do falecido é esquartejado e oferecido como alimento para tais aves. “Os abutres são sagrados porque obedecem à primeira lei cármica budista: não se alimentam de um ser vivo”, diz Prado, que registrou a cultura tibetana com o rigor dos melhores antropólogos.

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