É certo que há muito tempo as idéias do barão francês Pierre de Coubertin, criador dos Jogos Olímpicos da era moderna e ardoroso defensor do espírito amador, deixaram de servir de guia aos esportistas. Nunca como em Pequim, no entanto, uma Olimpíada teve atletas tão distantes do lema cunhado por ele, segundo o qual "o importante é competir". Uma lista publicada pela revista Forbes mostra como são estratosféricos os salários de algumas estrelas das delegações instaladas na China. A relação é encabeçada pelos craques da NBA Kobe Bryant, com remuneração de US$ 36,2 milhões anuais, e LeBron James, US$ 35,1 milhões. Ambos integram a seleção americana de basquete. Em terceiro vem o brasileiro Ronaldinho Gaúcho, que ganha US$ 34,2 milhões por ano. Não por acaso, astros de esportes cultuados por multidões, que garantem grande parte de seus rendimentos com contratos publicitários. Ao lado deles há em Pequim atletas que competem sem o mínimo para a subsistência. Algumas vezes o contraste acontece no mesmo esporte. O futebol brasileiro, que tem o abastado Ronaldinho, também é defendido por atletas como Tânia Maranhão, da seleção feminina, remunerada com R$ 1,5 mil (US$ 922) do programa bolsa-atleta. "Continuo jogando porque tenho paixão pelo que faço. Se fosse por dinheiro, já teria parado", diz Tânia.

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Isso acontece com os mais variados esportes e países. Enquanto o mundo estava de olho na seqüência de recordes quebrados pelos nadadores no Cubo d’Água, quase todos sob patrocínios milionários, o nadador Chaquil Kamal, de Moçambique, circulava anônimo pela Vila Olímpica. Para participar dos Jogos de Pequim ele teve que se contentar com uma ajuda de custo mensal de US$ 100 (R$ 160). "Vou tentar fazer o melhor", prometia, um tanto desconsolado.

Como se não bastasse a desproporção dos salários, delegações ricas como a dos Estados Unidos contam com um suporte igualmente valioso. No caso dos americanos, as confederações de várias modalidades esportivas puderam montar bases de treinamento em países vizinhos à China, trouxeram a Pequim nutricionistas e contam com aparelhos de preparação de ponta. Nas representações olímpicas de alguns países, a situação é oposta. Para qualificar o boxeador Azea Augustama aos Jogos, o Comitê Olímpico do Haiti dispôs de apenas US$ 40 mil (RS$ 65 mil). Na temporada préolímpica, Augustama esteve no Brasil. "Queríamos pedir às autoridades brasileiras material como capacetes e luvas para treinamento, mas não tivemos sucesso", conta o presidente da federação de boxe do Haiti, Ernest Laraque.

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Entre os 277 atletas brasileiros presentes em Pequim, há 36 que recebem o bolsa-atleta, como Carlos Ertel, o Menta, da seleção de handebol, que não ganha mais de R$ 2 mil (US$ 1.220). O benefício, concedido pelo Ministério dos Esportes, garante aos competidores que não têm como financiar suas atividades esportivas um auxílio que varia de R$ 300 (US$ 184) a R$ 2 mil (US$ 1.220). Entre eles, há histórias como a do corredor maranhense José Carlos Gomes Moreira, uma promessa, que sofreu lesão muscular grave em 2002. Sem apoio financeiro, ele se recuperou e conseguiu índice olímpico. "Sonho um dia bater o recorde sul-americano dos 100 metros rasos", diz Moreira.

A escalada dos super-salários no esporte é algo irreversível, assim como a participação dos megaastros. "É importante para os Jogos que haja um nível de excelência cada vez maior. Isso é bom para o esporte e é bom para os negócios gerados pelas atividades esportivas", opina Aníbal Manave, vice-presidente do comitê moçambicano. "O que falta é dividir os lucros gigantescos desse evento com os atletas mais pobres, para torná-los mais competitivos." Talvez, proporcionar igualdade de oportunidades seja a forma ideal de atualizar o espírito olímpico preconizado pelo bom e velho barão de Coubertin.