i56995.jpgPassados dez dias do início dos Jogos Olímpicos de Pequim, a competição tem uma cara. E essa cara é a de Michael Phelps. Dotado de braços desproporcionalmente longos, pernas curtas e jeito desengonçado, o jovem nadador americano consolidou sua trajetória de superhomem. Ao conquistar na terça-feira 12 a quinta medalha de ouro na piscina do Cubo D’Água, cumpriu o feito de subir 11 vezes ao lugar mais alto do pódio olímpico, algo jamais realizado por nenhum outro esportista do planeta. O mais incrível: faz isso sem dificuldade. Ele atravessa a piscina – e derruba recordes – como se tivesse nascido só para nadar. Por trás do atleta que marcha para a imortalidade na capital chinesa, atraindo para si os olhos do mundo, está um rapaz descontraído e brincalhão de 23 anos, que abre mão do tempo de lazer para treinar até cinco horas por dia, seis dias por semana. Há dois grandes motivos para tanta dedicação. Primeiro, ele gosta do que faz. "A água é o ambiente onde meu filho se sente melhor", conta Debbie, a mãe de Phelps, que está em Pequim. A segunda razão, o próprio nadador costuma sintetizar numa frase simples: "Quero ser o melhor", diz. Alcançada essa meta, não há dúvida sobre qual será sua nova motivação. A partir de agora, resta a Phelps o desafio de superar a si próprio.

i56996.jpgAntes de deixar o mundo inteiro extasiado – na quinta- feira 14 conquistou o sexto ouro e bateu o sexto recorde mundial -, o nadador americano já era considerado um fenômeno por seus próprios pares. Entre os integrantes das delegações adversárias, corre nos bastidores uma frase ilustrativa dessa superioridade: "Quando Phelps está na água, a briga é pela prata." A galeria de admiradores é imensa. "Outro como ele, só daqui a 50 anos", resume o ex-nadador brasileiro Djan Madruga, medalha de bronze na Olimpíada de Moscou, em 1980. Também o ex-nadador americano Mark Spitz, que anteriormente detinha o recorde de medalhas olímpicas, não regateia elogios. "Trata- se do maior atleta da natação que eu vi nos últimos 20 anos." Observador atento, Madruga considera que o principal segredo de Phelps está em sua virada "estilo golfinho". Ao contrário dos outros atletas, ele vira em direção ao fundo da piscina e volta à superfície fazendo até sete ondulações, o que lhe proporciona um impulso maior (leia quadro). "Os outros atletas costumam fazer quatro ou cinco ondulações", explica o ex-nadador. Há quem acredite que, além da técnica, a fisiologia do americano faz a diferença. Aos que comentam sobre um possível doping, o próprio Phelps respondeu depois de sua sexta medalha de ouro: "Podem dizer o que quiserem, eu falo por mim. Estou limpo. Já me ofereci para fazer testes."

Soterrado sob tantas medalhas e prêmios, Phelps não abandona o jeitão que, fora das piscinas, o torna parecido com qualquer jovem americano de sua idade. Residente no Estado de Michigan, ele é amante de hip-hop, videogames e adora passear com Herman, seu cachorro buldogue. A forma preferida de gastar seu tempo livre parece incompatível com um atleta de ponta. "Quando não estou nadando, gosto de comer e dormir", afirma. Seu cardápio rotineiro é inacreditável. Pela manhã, dois copos de café e três sanduíches de ovo frito, omelete com cinco ovos, torradas e três panquecas de chocolate. No almoço, come macarrão e no jantar, pizza. Em época de treinamento, ele consome entre oito mil e dez mil calorias diárias, mas costuma nadar cerca de 75 quilômetros por semana. Entre a Olimpíada de Atenas (2004) e a de Pequim, o nadador ganhou sete quilos de massa muscular – e nenhum grama de gordura.

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i57000.jpgÉ preciso mesmo muitas calorias para sustentar o corpo enorme e mal distribuído de Phelps. A extensão dos braços é 7,6 centímetros maior do que a sua altura, de 1,93 m – na maioria das pessoas essas medidas são bem parecidas. Além disso, o tronco é longo demais em comparação às pernas curtas. Para alguns fisiologistas, esse fator contribui para diminuir sua resistência à água, proporcionando uma velocidade maior. O queixo afilado e o rosto comprido completam o estranho conjunto, emprestando ao recordista a aparência de uma garça. Sua desenvoltura nas piscinas, no entanto, indica que ele pertence a outro ramo do reino animal. "Muitos me perguntam como é ter um peixe como filho", brinca Debbie, sua mãe, que, junto às irmãs de Phelps, foi assídua nas arquibancadas do Cubo D’Água. "Não tenho idéia de até onde ele pode chegar, pois sempre dá o máximo em cada prova."

Seguindo o caminho das irmãs que praticavam natação, o rapaz começou a nadar aos cinco anos. O esporte servia como válvula de escape para o stress constante entre sua mãe e seu pai, o policial Fred. Os dois discutiam diariamente e acabaram se separando em 1993. "Me sentia mais à vontade na água. Submerso, eu não tinha que ouvir ninguém gritando", diz ele. Phelps assistiu às seletivas da Olimpíada de Atlanta, em 1996, na qual sua irmã Withney tentou a classificação. Ela ficou na sexta colocação nos 200 m borboleta e não conseguiu a vaga. A família chorou na arquibancada. Por conta de quatro hérnias de disco, Withney teve de encerrar a carreira mais cedo e nunca disputou as Olimpíadas.

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Por sua vez, Phelps, aos 11 anos, já mostrava grande potencial. O técnico Bob Bowman insistiu para que passasse a treinar nas quatro modalidades de natação. Deu certo. Quatro anos depois, tornouse o mais jovem recordista mundial masculino. Começava aí uma sucessão de glórias nas piscinas e fora delas. Uma das homenagens que mais emocionaram o atleta foi prestada pela cidade de Baltimore, onde nasceu, que rebatizou uma rua com o seu nome.

O talentoso Phelps pôde realizar o sonho de sua irmã em 2000, quando disputou os jogos de Sydney. Desde então, bater recordes tornou-se rotina para o nadador e a busca da perfeição, sua obsessão. Para conseguir desenvolver uma virada eficiente, por exemplo, durante três anos Phelps investiu pesado em musculação, para adquirir força, melhorou sua impulsão e treinou sem parar a pernada de borboleta, movimento que eles fazem até emergir. Com isso, tornou-se um dos melhores nadadores de transição do mundo, capaz de chegar à marca de 15 metros nadando embaixo d’água (o permitido pela regra) em quase todas as viradas.

Sua competitividade também o leva longe. Em 2003, o americano Ian Crocker venceu a prova de 100 m borboleta no Campeonato Mundial de Natação, impedindo-o de ganhar a sexta medalha de ouro e quebrar sua sexta marca mundial. Phelps colou uma foto de Crocker na parede, ao lado de sua cama. Durante quase um ano, a imagem de seu algoz era a primeira coisa que via pela manhã. A revanche veio na Olimpíada de Atenas, em 2004, quando Phelps derrotou Crocker por 0,4 segundo. "Odeio perder", justifica o atleta. Nos quatro anos que antecederam os Jogos de Atenas, Phelps escreveu em sua autobiografia Sob a superfície que, provavelmente, não tirou mais de quatro dias de folga. A versatilidade é outra de suas marcas. Enquanto a maioria dos nadadores se especializa em um determinado tipo de prova ou estilo, ele se inscreveu em oito categorias em Pequim. Para seu técnico, um conjunto de fatores faz do atleta o fenômeno que ele é, mas a condição psicológica é determinante. "Ele consegue relaxar e focar no que está fazendo", diz Bowman.

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Calmo e afável, o rapaz raramente dá motivos de preocupação à família. Mas já se envolveu em pelo menos um episódio controvertido. Em novembro de 2004, foi preso em sua cidade natal por dirigir embriagado e por não parar em um sinal fechado. Uma dor de cabeça mais recente foi o acidente acontecido em 2006, no qual quebrou o pulso. Ao escorregar, tentou apoiar-se no braço e deu-se o pior. Tanto o atleta quanto seu técnico temeram que sua recuperação fosse demorada, mas ele voltou às piscinas em tempo recorde. No Campeonato Mundial de Melbourne, na Austrália, no ano passado, provou que estava recuperado. Tornou-se o único nadador a quebrar cinco recordes mundiais num mesmo evento.

Basta vê-lo em uma prova importante para constatar que isso é a pura verdade. Primeiro, Phelps chega ao parque aquático sorridente e descontraído. No caminho até a piscina, embalado pelo hip-hop no MP3, seu semblante começa a se transformar, vai ficando mais sério. Pouco antes da largada, de olhos fixos na piscina, ele parece ter todo o plano da prova detalhado na cabeça. Depois, normalmente comemora a vitória soltando urros e fazendo caretas engraçadíssimas. Isso sem falar, é claro, no show apresentado dentro d’água. Seu carisma é tão grande que arrastou para o Cubo D’Água nada menos que os astros da NBA Kobe Bryant e LeBron James, que deixaram a Vila Olímpica exclusivamente para isso. Ao assistir ao desempenho de Phelps, os atletas da seleção americana de basquete se transformaram em fãs e até puxaram os gritos da torcida. Pena que não tenham assistido ao vivo ao desempenho da terça-feira 12, nos 200 m borboleta. Ao mergulhar na piscina, os óculos de natação saíram do lugar e se encheram de água. "A certa altura, não estava vendo nada, continuei nadando sem saber onde estava a borda", relatou o nadador. Resultado: ele venceu a prova e quebrou mais um recorde. Nada parece deter o super-herói olímpico. Sua missão de exterminar recorde após recorde vem sendo cumprida à risca. Isso, como todo mundo viu, ele pode fazer até mesmo de olhos fechados.