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São Paulo, 16 de janeiro de 2007: o corpo da advogada
Valéria Marmit é resgatado dos escombros da
cratera aberta durante a construção do metrô

Os gêmeos Edgard e Guilherme, de 11 anos, descobriram da maneira mais dramática o que é a insensatez de viver numa ci dade brasileira. Na noite da terça-feira 16, sob holofotes e olhares de todo o País, a mãe deles, Valéria Alves Marmit, foi retirada sem vida dos escombros de uma das maiores tragédias urbanas verificadas em São Paulo. Ela estava desaparecida desde as três horas da tarde da sexta-feira 12, quando transitava à bordo de uma van de passageiros pela rua Capri, no bairro de classe média de Pinheiros, para pegar um trem e ir ao encontro dos filhos em casa. Naquele exato instante, a terra abriu-se debaixo de seus pés. Em segundos, com uma violência semelhante à dos grandes terremotos, fez-se uma cratera de 80 metros de diâmetro e 38 metros de profundidade. Valéria e mais cinco pessoas foram tragadas para a escuridão. Ali, os irmãos Edgard e Guilherme ficaram órfãos. Dali, a mesma amarga sensação de orfandade emanou para todo o País, envolvendo a todos os que habitam cidades brasileiras. Daquele trágico ponto, no qual os dramas humanos tiveram proporções maiores do que o simples número de vítimas, verdades absolutas emergiram – nos dias que correm, ninguém está seguro nas metrópoles brasileiras. O poder público faliu em sua premissa básica de dar suporte e segurança aos cidadãos.

Vidal Cavalcanti/AE

Inocentes: na quarta-feira 16, durante
o enterro de Valéria, a dor da filha, Juliana (à esq.), e dos gêmeos Edgard
e Guilherme

O buraco aberto pelo desmoronamento de um trecho em construção da linha 4do metrô paulistano, e os acontecimentos em seu entorno, deram um retrato claro da situação. Nos momentos seguintesao acidente, os mais de 120 moradores da região não contaram com nenhum tipo de sinal de alerta para saber o que acontecia. Nenhuma sirene tocou, nenhum aviso organizado de evacuação foi feito. Eles ficaram sabendo que estavam com a vida em risco pelo estrondo provocado pela movimentação de terra, as trepidações e o apagar das luzes, causada pela queda de energia. Obrigados a evacuar suas residências, cujos telhados tremiam, paredes rachavam e tinham o chão rebaixado, foram lançados ao meio da rua aos gritos de que tinham de fugir. Contavam somente com a roupa do corpo e a solidariedade entre si mesmos. Nenhuma autoridade apareceu nas primeiras horas a seguir do desabamento. Essa situação de abandono absoluto prosseguiu após o acidente. Foram longos momentos de humilhação, em que pessoas de todas as idades tiveram de esperar e pedir dinheiro emprestado para fazer pequenas refeições. Só sabiam que não podiam voltar para seus lares, não faziam idéia sobre onde teriam de ir. Até as 20 horas daquela sexta-feira 12, o máximo de abrigo que essas vítimas dispunham eram as instalações do bar da esquina da rua Capri e a calçada defronte da banca de jornais. “O pessoal da Defesa Civil só foi aparecer na segunda-feira”, conta o corretor de imóveis Antônio Teixeira. A assistência jurídica do Estado começou a ser oferecida cinco dias depois da tragédia.

Wilton Júnior/AE

Lama em Minas: mais de 16 mil
pessoas estão desabrigadas no Estado

A chegada das autoridades coincidiu com a entrada em circulação de versões as mais díspares para o acidente. Culpou-se, de saída, a queda de um bloco de concreto que estaria sendo carregado por uma grua. Viu-se, rapidamente, que isso foi apenas uma especulação que não se comprovou. A próxima desculpa recaiu sobre o excesso de chuvas, como se não fosse comum chover muito em São Paulo nesse período do ano. Mais tarde, falou-se que a responsabilidade era do solo repleto de argila. Sobrou até agora, para os cidadãos, uma dúvida sem data para ser dirimida. “Não há prazo definido para a conclusão das investigações”, afirmou o promotor de Justiça José Carlos Blat.

Prefeitura de Pará de Minas

Sem estradas: chuvas abrem buracos que se multiplicam nas pistas do País

Os responsáveis pelo consórcio Linha Amarela, formado pela construtoras Odebrechet, Camargo Corrêa, OAS, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez igualmente se dizem sem pistas sobre o motivo do desastre. “Foi um movimento abrupto, que não tínhamos nenhuma condição de prever”, descreveu um representante do grupo. Na véspera do acidente, um movimento de terra em torno das escavações chamou a atenção dos coordenadores da obra, mas foi considerado de rotina, comum naquele tipo de operação. Seis dias após o acidente, quando seis corpos já haviam sido removidos dos escombros, o engenheiro Celso Rodrigues, responsável direto pela obra, foi autorizado a falar à imprensa. Ele narrou que o acidente teve a duração de dois minutos, entre um primeiro estrondo e a movimentação de terra. Graças a esse primeiro sinal, foi possível retirar 25 operários que escavavam o túnel do metrô a 30 metros do solo. Alguns correram pela rota de fuga. Outros foram expelidos pelo túnel de ventilação, em razão da pressão do ar. “Nosso plano de emergência previa pelo menos dez minutos para promovermos a interdição das vias públicas e a evacuação da área”, afirmou o engenheiro Rodrigues. Ele assinalou que obras de engenharia não estão livres deste tipo de situação. “Acidentes ocorrem em obras em todo o mundo. Neste caso, infelizmente, o problema maior é que houve vítimas.”

Tasso Marcelo/AE

Patrimônio perdido: casas ruíram
nas encostas de Teresópolis, no Rio

A pressão política a que obras deste tipo são submetidas no Brasil foi um dos motivos apontados para explicar o acidente. “A engenharia brasileira é a melhor do mundo, tanto na construção de barragens como em túneis de metrô”, afiança o presidente do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (Confea), Marco Túlio de Melo. “O problema que acontece no Brasil é que os prazos políticos e os interesses econômicos muitas e muitas vezes se sobressaem aos prazos técnicos das obras.” Ele tocou, ainda, num ponto nevrálgico de todo o acidente: a fiscalização da obra. “A culpa por esse acidente é do Estado brasileiro, que desmontou a estrutura técnica de fiscalização e se omite de responsabilidade quando surgem problemas.” Com efeito, quando as obras saem a contento, os políticos são os primeiros a posar para as fotografias em viadutos, passarelas e estradas. Mas quando há problemas, promovem um show de transferência de responsabilidades.

Dentro e à volta do buraco da maior metrópole do País, os poderes municipal, estadual e federal agiram cada um a seu modo. O prefeito Gilberto Kassab foi o primeiro a chegar na sexta-feira 12. O governador José Serra apareceu à noite e voltou ao local durante os dias seguintes. No momento em que a cratera se abriu, o presidente Lula estava de férias no Guarujá, a pouco mais de uma hora de São Paulo, mas não viu motivo para se incomodar. Os ministros das Cidades e da Integração Regional, Márcio Fortes e Pedro Brito, igualmente não deram maior importância ao acidente. Eles não se moveram de Brasília para prestar nenhum tipo de solidariedade aos cidadãos paulistanos. No auge do drama das vítimas, quando cadáveres saíam ensacados dos escombros dos túneis, Lula rumou para o Equador, na quarta-feira 17, para assistir à posse do presidente daquele país, falando na necessidade da integração do Mercosul. “O problema do Brasil tem uma dimensão conjuntural que se traduz na absoluta ausência de governo na questão da segurança ao cidadão”, diz o cientista político Hélio Jaguaribe.

Os irmãos Edgard e Guilherme são o retrato sem retoques dessa desfaçatez. Na manhã da quinta-feira 18, ao acordarem no dia seguinte ao enterro da mãe, eles correram para o quarto do pai, o motorista Wagner Marmit, agarrados a uma foto de Valéria. Choravam. O pai não conseguiu encontrar palavras que os consolassem. “Estou confuso, ainda não tive tempo para pensar em tudo o que aconteceu”, registra Wagner. Ele tem forças, no entanto, para questionar o papel do poder público em toda essa tragédia. “O Estado não diz nada, não apóia, não sustenta. Como estarão as outras obras? Será que não teremos mais tragédias como essa?”, perguntava-se ele. Além de Edgar e Guilherme, a tragédia deixou órfãos dez adolescentes e adultos. Thaís Ferreira Gomes, 20 anos e grávida de sete meses, não quis crer no que via. Seu marido, Wescley Adriano da Silva, era o cobrador da van que foi engolida pela cratera. Ele teve o corpo resgatado na quinta-feira 18, quando, finalmente, Thaís foi forçada a entender que teria de recomeçar a sua vida.

Problemas em outras partes do País

Não só no episódio de São Paulo, mas em todo País cresce uma sensação de abandono. Desde o início do ano, as chuvas que castigam de norte ao sul o Brasil deixam vítimas abandonadas à própria sorte. Na semana passada, Minas Gerais apresentava um quadro de 16 mil desabrigados e 23 mortos em razão de estragos causados pelas chuvas e pela inundação de lama que assolou a Zona da Mata. Cidades inteiras foram postas em estado de emergência, cobertas pelos dejetos da mineradora Rio Pomba, cuja barragem estourou no dia 10 de janeiro. De lá para cá, o que mais se vê são cenas de moradores humildes que perderam tudo e não têm nenhuma perspectiva de recuperação. “Perdi 50 toneladas de fios e algodão”, calcula o empresário Paulo Lima Guimarães, da cidade de Miraí, no coração da enchente de lama. “Meu prejuízo é superior a R$ 500 mil. Estou perdido.” Anunciou-se uma multa de R$ 75 milhões para a mineradora Rio Pomba, responsável pelo acidente. No ano passado, a mesma empresa teve um de seus depósitos de resíduos de bauxita estourado, causando estragos na mesma região. Foi punida em R$ 80 mil, mas jamais pagou a conta. Desta vez, já mandou avisar que recorrerá à Justiça da nova multa. “O Brasil é um país em que as coisas são feitas pela metade”, comenta o sociólogo Roberto da Matta. O governador do Estado, Aécio Neves, não estava lá para tentar minimizar a dor de seus cidadãos. Optou por levar até o final suas férias na neve de Aspen, nos Estados Unidos, onde alternou sessões de esqui com, talvez, alguns telefonemas para auxiliares.

No Rio de Janeiro, os problemas atingiram em cheio a região serrana. As chuvas levaram ao desabrigo cerca de sete mil pessoas. Outras 19 mil foram desalojadas de suas casas em razão do risco de desabamentos. Vinte e sete pessoas morreram e 19 ficaram feridas em cidades como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Em Mato Grosso, mais 300 pessoas ficaram desabrigadas pela falta de estrutura das cidades em escoar as chuvas, comuns nesse período do ano. É um problema histórico que, sem solução à vista, destrói estradas e provoca o isolamento de populações inteiras.

Fossem apenas as intempéries climáticas, o Estado brasileiro já teria um grande problema pela frente. Mas também a violência em rota crescente vem sendo combatida em conta-gotas, sem muito planejamento. Na capital carioca, uma nova experiência vem sendo tentada. Tomado por tropas de elite, o Rio vive dias de praça de guerra. O que os cidadãos brasileiros se perguntam, neste turbilhão de tragédias de todos os tipos, é qual será a próxima onda. Não se tem garantias em parte alguma, e ainda não se encontram líderes genuinamente preocupados com o suporte da população. No Brasil dos dias de hoje, os cidadãos fazem parte de uma classe inferior, cheios de obrigações, mas sem direitos. Ao primeiro problema, são arremessados de um lado para o outro, sem nenhum tipo de amparo institucional. O conceito de cidadania enfraquece enquanto as autoridades desviam suas atenções para interesses mais específicos – como o de quem vai comandar o Congresso, cargo cobiçado que converte seu ocupante no segundo sucessor direto do presidente. Um detalhe na tragédia paulista. Algum dos candidatos ao poderoso cargo parlamentar apareceu para dar apoio às vítimas?