O fantasma do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura nos porões do DOI-Codi de São Paulo em 1975, volta a assombrar a imprensa, os quartéis e a política brasileira. Durante cinco dias, a partir da publicação pelo jornal Correio Braziliense, no domingo 17, de fotos de um homem nu e humilhado, com as mãos cobrindo o rosto – supostamente o próprio Herzog –, o Brasil revolveu páginas infelizes de sua história, revivendo os horrores da ditadura militar. Na quinta-feira, uma investigação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) mostrou que o homem não era Herzog – e o País descobriu que ainda hoje flutua sobre o chão incerto de um passado que não se conhece uma ferida que não se fecha.

Vinte e nove anos depois do último general-presidente, o Brasil continua a temer e a purgar a dor de mortos e desaparecidos. Mais do que as fotos, o que assombrou o País foi o teor saudosista da nota emitida pelo Exército, ressuscitando velhos jargões, como “revanchismo”, “movimento comunista internacional” e “legítima resposta à violência”. Num governo formado por muitos que vieram da esquerda, foram torturados e exilados, o texto bolorento e sem assinatura do Centro de Comunicação Social do Exército parecia mais que inadequado – era um escárnio.

Telefonemas nervosos quebraram a paz das estrelas petistas, logo que o jornal saiu, preocupados em controlar o foco de radicalismo no QG do Exército. Ministros e senadores abafaram reações mais iradas, sob o compromisso de que outra nota logo retificaria o estrago da primeira. Na inesperada crise de comando, despontou na manhã de terça-feira a liderança firme do comandante supremo das Forças Armadas: o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, numa dura conversa ainda na Base Aérea de Brasília, exigiu do ministro da Defesa, José Viegas, uma retratação pública e clara: “Quero uma resposta convincente, Viegas. Esta nota foi impertinente e equivocada”, condenou Lula, em tom irado.

Retratação – Foi uma longa negociação do ministro. Cercado por seus 14 generais do Alto Comando numa reunião de rotina, o comandante do Exército, Francisco Albuquerque, chegou a colocar na mesa a carta de demissão. Os próprios generais acharam que, em vez do confronto, deviam engolir a retratação, menos indigesta do que uma crise institucional. Albuquerque tentou uma primeira versão, frouxa. Tentou uma segunda, incompleta. Só na terceira versão, com menção explícita ao Centro de Comunicação, é que o texto foi aprovado por Lula. Na noite de terça-feira, desdizendo a nota de 39 linhas do domingo, o comandante do Exército divulgou outra, de 20 linhas, desta vez assinada por ele, lamentando pela primeira vez em 29 anos a morte de Herzog.

Lula conseguiu, em 48 horas, repetir uma proeza que só o general Ernesto Geisel conseguiu em 1976: enquadrar o Exército, sem quebra da hierarquia. Agora, pelo tom e pelo estilo, era outra assombração no horizonte: “Parecia uma nota psicografada pelo general Sylvio Frota, linha-dura do Geisel”, espantou-se o deputado Luiz Eduardo Greenhalg (PT-SP), ao ligar às 10h de domingo para reclamar ao líder do Governo no Senado. “Calma, não faça marola. O Lula também está irritado”, avisou o senador Aloizio Mercadante. Na mesma hora, Viegas ligava para seu colega José Dirceu, da Casa Civil: “Isso é inaceitável”, antecipou-se o ministro da Defesa, que nada soubera. Até o comandante do Exército, desembarcado horas antes de Nova York, parecia desinformado.

Dinossauro – Inquirido pelo jornal na quinta-feira 21, o general Antônio Gabriel Esper, chefe do Centro de Comunicação, consultou o chefe do Estado-Maior do Exército (EME), general Antônio Apparicio Ignácio Domingues. Comandante interino da tropa na ausência de Albuquerque, Apparicio é definido pelos colegas como “um dinossauro da linha dura”. Tenente nos idos nervosos de 1968, quando nasceu o AI-5, ele desembarcou como major em 1976 no QG do II Exército, ainda abalado pela morte de Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Adido militar da embaixada brasileira no Chile de Pinochet, Apparicio acaba de ser indicado por Lula para o Superior Tribunal Militar (STM). Foi dele o tom duro da primeira nota, que atropelou Albuquerque e Viegas e espantou o País. Apparicio só depende do Senado para ser empossado no STM. Já que a responsabilidade pelo texto não foi assumido publicamente, não ficaram isentos de culpa seus dois chefes imediatos, o comandante e o ministro, que saíram chamuscados do episódio.

Outra vítima é a imprensa, que sustentou por quase uma semana um equívoco doloroso. O jornal brasiliense vasculhou na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados um arquivo do ex-agente do DOI-Codi José Alves Firmino, que fez espionagem política nos anos 90, infiltrou-se na convenção nacional do PT e posou para fotos ao lado do próprio Lula. Numa das pastas, sem nenhuma identificação, restavam três fotos de um homem nu – o suposto Herzog. A comoção que elas provocaram mostra que uma página de nossa história não está virada e que muita verdade permanece oculta. O retratado é, na verdade, o padre canadense Leopoldo D’Astous, que atuava na Pastoral Operária em Brasília nos anos 70. Sequestrado pelo SNI, foi fotografado nu ao lado de uma freira, irmã Terezinha, no quarto despojado de uma pousada em Caldas Novas (GO). Só uma das três fotos do jornal mostravam Terezinha, de roupa, ao lado do padre. Nas outras fotos, quase 20, ela aparece também nua, mas nunca praticando sexo. Leopoldo aparece de frente, claramente identificado.

Dias depois do sequestro, as fotos apareceram nas paredes próximas à Igreja São José Operária, na Asa Norte da capital, onde os dois trabalhavam. Terezinha, traumatizada, ainda vive no Distrito Federal, quase reclusa. Leopoldo, aposentado, se divide entre Brasília e o Canadá. A pasta com as fotos do casal repousa no quarto andar do Planalto, no gabinete do general Jorge Félix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, a quem se subordina a Abin. No domingo 17, Clarice, a viúva de Herzog, se emocionava diante da suposta imagem do marido no Correio Braziliense: “É horrível vê-lo assim, sofrendo tanto constrangimento.” Pela morte do marido numa dependência do Estado, a viúva foi indenizada em R$ 100 mil reais. No dia seguinte, segunda-feira 18, outro jornalista, Carlos Heitor Cony, via no Diário Oficial a portaria que lhe concedia uma indenização de R$ 1,4 milhão e uma pensão mensal vitalícia de R$ 19 mil.