Era setembro daquele desditoso ano de 2001 naquele país de infortúnios chamado Argentina. O estudante americano Bruno Cardogan, pesquisador da obra do escritor Jorge Luis Borges (1899-1986), chegara a Buenos Aires decidido a encontrar Julio Martel, um cantor de tangos quase desconhecido, mas que, diziam os conhecedores, era sublime e seu repertório se alimentava de tangos primordiais. Além disso, ele cantava como nenhum outro; diziam alguns que ele era melhor até do que o melhor dos melhores, o imortal Carlos Gardel (1890-1935). Cardogan ouviu falar dele enquanto escrevia uma tese sobre os ensaios de Borges acerca do tango. Ele ficara particularmente intrigado com as observações do escritor de que os verdadeiros tangos eram aqueles compostos antes de 1910, quando ainda eram dançados em bordéis e cabarés, não os que surgiram depois, “influenciados pelo gosto parisiense e pelas tarantelas genovesas”. Martel, pensava Cardogan, talvez fosse a chave para resgatar aquela Buenos Aires perdida nas brumas borgianas. Um detalhe, contudo, tornava sua empreitada altamente temerária: o mitológico menestrel nunca gravara nada, era débil e enfermo e cantava a esmo em lugares incertos, completamente fora da rota turística da capital portenha. Cardogan se hospedou numa pensão da calle Garay e, espantado, descobriu que ela parecia coincidir com a casa onde Borges situou o Aleph, aquela pequena esfera deslumbrante que encerra todo o universo. Essa Buenos Aires misteriosa e desconhecida que vem à tona com a busca do cantor fugidio é o tema de O cantor de tangos (Companhia das Letras, 221 págs.), o mais recente romance do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, autor de best-sellers como O romance de Perón, Santa Evita e O vôo da rainha.

No encalço de Julio Martel, Cardogan acabará se perdendo nos labirintos (uma das obsessões de Borges, ao lado dos espelhos e das bibliotecas)  do espaço e do tempo. “Um dos eixos da obra é o labirinto; por isso busquei  lugares da cidade que não são protótipos dos roteiros turísticos”, disse Eloy Martínez. Assim, o pouco conhecido Parque Chas, uma região da capital argentina cujas ruas foram construídas segundo uma geometria labiríntica, torna-se o centro dos acontecimentos de uma parte da narrativa e uma metáfora de Buenos Aires e da Argentina, com ecos do peronismo, da escalada da violência política e da repressão dos anos 70, da corrupção e da crise econômica atuais.

Mas o romance evoca também “uma cidade diferente e literária, que vê seu fim com a crise econômica atual”, cujo ápice foi atingido no final daquele  fatídico 2001, com a queda do governo Fernando de la Rúa e a ascensão de outros quatro presidentes no período de um mês. Cantor de tango é um diálogo permanente com Borges, “que tinha obsessão por uma Buenos Aires do passado, pouco urbana, uma cidade dos arrabaldes e dos subúrbios. Por isso a melancolia, que lhe permitiu criar uma literatura fantástica de primeiro nível”, completa o escritor. No surpreendente final de O cantor de tango, como num jardim onde os caminhos se bifurcam, começa tudo de novo.

Pós-piazzolla: o escritor diz que música e água não se detêm, estão sempre em movimento, e que hoje há uma renovação do tango na Argentina, com um público jovem muito interessado