Truco é um dos hobbies do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os participantes devem ter a capacidade de blefar e a destreza para enviar sinais disfarçados aos parceiros sobre as cartas que possuem em mãos. Mas a partir do fechamento das urnas da eleição municipal, no domingo 31, o presidente terá que se dedicar a um outro jogo, solitário e que exige concentração e paciência: o quebra-cabeça. As peças que Lula terá que encaixar são das mais variadas formas, tamanhos e cores: companheiros do PT, generais e soldados dos partidos da base governista e até os bicudos rivais. O tabuleiro presidencial inclui vários desafios: complicadas votações de projetos de interesse do Planalto no Legislativo, a disputada eleição pelas presidências das mesas do Congresso, a espinhosa reforma ministerial e os tradicionais acertos de conta dentro do PT.

A lenda que conta o surgimento do Tangram, o milenar quebra-cabeça chinês, revela as qualificações que Lula terá que demonstrar mais do que nunca agora. Um monge teria deixado cair no chão uma porcelana quadrada que se partiu em sete pedaços. Assim nasceu o Tangram, que significa “tábua das sete sutilezas” ou “tábua das sete sabedorias”. Essas características faltaram ao presidente em alguns momentos no ringue mais disputado do País: São Paulo, palco da sangrenta e chorosa briga entre José Serra (PSDB) e Marta Suplicy (PT). A falta de sutileza presidencial surgiu ao público no primeiro turno, quando Lula pediu votos para a prefeita durante a inauguração de uma obra na capital paulistana. Mas no segundo turno, o presidente Lula foi mais sábio: conteve-se na platéia, vendo o PT brigar em 24 das 44 cidades espalhadas por 19 Estados onde os mais de 27 milhões de eleitores voltam às urnas. O PSDB de Fernando Henrique Cardoso disputa em 20 cidades no segundo turno, sendo que os dois partidos rivais duelam em dez delas.

Nesta reta final, o Planalto teve de agir nos bastidores da disputa paulistana. Foi necessária uma intervenção branca do PT estadual e federal no quartel-general de Marta. Os “falcões” da coordenação da campanha da prefeita – ou os “Heavy Metal”, como foram apelidados seus principais colaboradores – insistiam no ataque incessante ao tucano. Contrariavam o estilo paz e amor do publicitário Duda Mendonça. Com a intervenção, a artilharia pesada na direção de Serra cessou. Somente na última semana da campanha, o programa eleitoral de tevê passou a bombardear os eleitores com informações sobre as obras de Marta, o que deveria ter ocorrido desde o primeiro turno. Outra tática foi alimentar dúvidas na cabeça do eleitor sobre a continuação dos feitos de Marta no caso da vitória de Serra.

O fim da guerra eleitoral, no domingo 31, coincide com o Dia das Bruxas, cada vez mais popular no Brasil entre crianças e adolescentes. Há mais de dois mil anos, os povos celtas se fantasiavam para assustar as almas dos mortos para tentar evitar que tomassem seus corpos. Quatro dias antes do “Halloween”, o presidente Lula completou 59 anos, na quarta-feira 27. Foi presenteado com um bolo no formato do mapa do Brasil e com notícias de que a desvantagem de Marta com relação a Serra diminuía. Mas bem que o presidente poderia ter recebido também de presente – só por precaução – uma fantasia de bruxo, fantasma, múmia ou até vampiro. Quem sabe o ajude a afastar os monstros pós-eleitorais que já rondam o Planalto.

Um deles está dentro do próprio PT, que só espera a poeira das urnas abaixar para sentar no divã. Correntes da esquerda do partido saíram fortalecidas, com seus integrantes indo para o segundo turno em quatro das nove capitais disputadas pelo PT, entre elas a surpreendente estrela Luizianne Lins, em Fortaleza. Mesmo setores moderados do partido prometem cobrar erros cometidos pela cúpula nesta campanha, além de começar a clamar por uma “despaulistização”. O prefeito reeleito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, foi um dos que saíram das urnas feliz com a vitória, mas preocupado com os rumos do partido.

Mas a parte mais difícil deste quebra-cabeça presidencial está no encaixe das peças dentro do Congresso e na Esplanada dos Ministérios. O Senado é um verdadeiro castelo mal-assombrado, onde o governo pena para formar uma base aliada fiel e majoritária no plenário. Lá, estão projetos vitais para o Planalto, como a Reforma do Judiciário e as Parcerias Público-Privada: o pontapé inicial das obras de infra-estrutura para engatar o País na rota do crescimento. Um poderoso encosto vem da Bahia e ameaça atormentar Lula no Senado: Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), mordido no pescoço pelos petistas que se recusaram a apoiar César Borges (PFL) em Salvador. ACM dá a receita para tentar envenenar o projeto de reeleição do presidente Lula: lançar a candidatura do prefeito do Rio de Janeiro, César Maia (PFL) a presidente em 2006. “Temos que dar um sinal claro ao País de que o PFL não é caudatário de ninguém e será a grande força oposicionista no Brasil”, esbravejou.

Mapa do poder – A eleição das presidências das mesas da Câmara e do Senado, que tanta dor de cabeça já renderam ao Planalto, promete tirar o sono presidencial. Se for confirmada a morte do projeto de reeleição do petista João Paulo Cunha (SP) e do peemedebista José Sarney (AP), Lula terá essas duas grandes peças para encaixar no seu mapa de poder. No caso de João Paulo o que se comenta é que ele poderá ocupar o lugar de Aldo Rebelo (PCdoB-SP) na Articulação Política. Este, por sua vez, marcharia para o Ministério da Defesa, no lugar de José Viegas.

O líder do governo no Senado, Aloísio Mercadante (PT-SP), é outra peça que poderá encaixar-se no tabuleiro do poder na segunda reforma ministerial do governo Lula, prometida para o período pós-eleitoral. Uma mudança que deverá ser pontual. Uma pasta na área social, como o Ministério da Saúde, para Mercadante é a ficha mais apostada em Brasília até agora. Lula não está satisfeito com o trabalho de Humberto Costa e a saúde foi um dos temas mais atacados País afora na campanha municipal. Como ministro, Mercadante poderia se projetar para uma eventual candidatura ao governo de São Paulo. O problema é que João Paulo também sonha substituir o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Habilidade é outro atributo que Lula deverá demonstrar com o intrincado PMDB, que tem dois ministérios, mas está rachado entre ser ou não ser oposição. O governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto (PMDB), prega o divórcio e contará com apoio do presidente nacional do partido, Michel Temer (SP), e do ex-governador do Rio Anthony Garotinho na reunião do partido no dia 10 de novembro, em Brasília.

Contagem – Na contabilidade geral do jogo eleitoral, Lula saiu fortalecido das urnas. “A eleição teve como pano de fundo o bom desempenho do governo Lula”, disse o secretário de Organização do PT, Gléber Naime. De fato, nas eleições municipais de 2000 o PT ocupava o quarto lugar no ranking dos votos e agora está no topo: foi o partido que mais cresceu (amealhou 37% a mais de votos no primeiro turno com relação à eleição passada). Em segundo vem o PSDB, que liderava o ranking de número de votos em 2000 e cresceu 16,4% neste ano até a contagem do primeiro turno. O PT mais do que dobrou o número de suas prefeituras. Seus principais rivais – PSDB e PFL – elegeram menos prefeitos neste ano com relação à eleição municipal passada, quando o presidente era FHC.

Na guerra pelas 5.562 prefeituras do País, o PSDB pareceu um gavião de garra afiada: duelou com o PT em dez cidades grandes no segundo turno, fazendo a estrela tremer em seus redutos, inclusive em vitrines internacionais como São Paulo e Porto Alegre. Os petistas se arrepiaram e sentiram o perigo da queda, depois de subir no alto salto do poder. No entanto, as cinco pontas da estrela vermelha também fizeram estragos. O PT manteve a fama de lutador resistente e bom de chegada em corridas eleitorais. Mas o PSDB mostrou finalmente que aprendeu a lutar como oposição e que galo é pinto perto de uma rinha com tucanos.