Nos estúdios da Rede Globo, no Projac, zona oeste do Rio de Janeiro, uma corda separa o quarto de Nazaré (Renata Sorrah) do galpão empoeirado no qual a vilã se arrasta alquebrada pela surra que acaba de levar. Alguns passos adiante, Maria do Carmo (Suzana Vieira) e Dirceu (José Mayer) sobem uma escada em direção a lugar algum, mas que, supostamente, desemboca na suíte armada para ser o ninho do reatamento amoroso do casal. E assim, entre cenários finamente decorados, colados a outros bem mundanos, desenvolve-se a novela Senhora do destino, o maior sucesso do horário nobre desde O rei do gado, em 1996. A cena em que Do Carmo bate em Nazaré por, entre outras coisas, ter roubado seu bebê na maternidade, deu à novela o maior Ibope até agora: atingiu 58 pontos de média e um share de 79%, ou seja, de cada 100 domicílios com tevê ligada, 79 estavam sintonizados na emissora. O entusiasmo levou a própria emissora a reprisar a pancadaria na manhã do dia seguinte no Mais você, de Ana Maria Braga. Mesmo reconhecendo, segundo a Central Globo de Comunicação, que “a edição destas imagens no programa foi uma atitude inapropriada”, ainda pode sofrer um processo do Ministério da Justiça. Descontado este desvio, nada impede a comemoração. Com seu carrossel de emoções, o folhetim de Aguinaldo Silva traz de volta os tempos áureos da novela das oito, desbancando a crença de que a fórmula estava esgotada. De novo, o País se reconhece e se incorpora em um drama fictício. A identificação se completa no elenco de veteranos talentosos que aciona a memória familiar dos telespectadores, acostumados a ver José Wilker, Renata Sorrah, Raul Cortez, Glória Menezes, Suzana Vieira, Yoná Magalhães, Ítalo Rossi e José Mayer em suas salas há pelo menos duas décadas.

Nas casas de papelão do Projac está o Brasil de verdade, na expressão de sua cultura e de seus dramas, como o da protagonista, uma mulher honesta que sai do Nordeste para vencer na cidade grande. Adriana Lessa é Rita, uma moradora de favela; Raul Cortez é o Barão, ex-nobre falido que rememora um antigo tempo de delicadeza; Eduardo Moscovis é Reginaldo, o político corrupto que todos adoram odiar, e Débora Falabella é Maria Eduarda, a romântica sonhadora, porque, afinal, ninguém é de ferro para cultivar só a dura realidade. “Novela é um processo psicossocial. E Senhora do destino cumpre perfeitamente esse papel”, diz Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP). Ele diz testemunhar diariamente o estreitamento desses laços através de comentários como o que ouviu na padaria perto de sua casa, em São Paulo: “Ah, que pena, a Djenane vai morrer…” A referência era à personagem de Elisângela, prostituta amiga de Nazaré, embora sugerisse se tratar de alguém da família.

Teatro – A melhor combinação da novela possivelmente não seria apontada na mesma padaria: a força dramática do texto e a do elenco. Após ler as cenas do jantar de Viriato (Marcelo Antony), filho de Do Carmo, na casa do Barão – que vai ao ar na terça-feira 2 –, José Wilker exultou: “Aquilo é uma peça de teatro em estado puro!” O próprio Aguinaldo Silva ressaltou a importância em bilhete aos atores. “Senhoras e senhores, isso não é apenas um jantar. É história. Trata-se de uma reunião com o que há de melhor e mais apurado na tevê brasileira em matéria de talento”, escreveu. Ao estabelecer o teatro como parâmetro, Wilker conferiu uma qualidade que não é comumente associada a novelas. Mas o trabalho de Renata Sorrah, por exemplo, mostra que tevê não é só close. Em linguagem popular, ela dá um banho de interpretação. “Nazaré é uma psicopata, ex-prostituta, assassina, ladra. Mas as pessoas conseguem ver humor nela também. Com esse papel, dei um salto qualitativo na minha carreira”, diz. Feliz, Renata frisa o que é opinião geral nos estúdios. “Esse sucesso todo se deve à equipe inteira. Está todo mundo motivado, querendo fazer o melhor.”

Como em qualquer produção do gênero, o stress não é mero coadjuvante. Recentemente, o diretor Wolf Maya, que também interpreta Leonardo, mandou um recado geral dizendo que não toleraria atrasos nas gravações e “colegas que decoram mal demais suas falas”. Maya acrescentou que eram sempre “os mesmos” e que isso era um “ato imperdoável”. Alguns alvos da descompostura são conhecidos, como Dado Dolabella, que faz o filho galinha de Do Carmo, e Mara Manzan, a Janice, cunhada de Do Carmo – ela, inclusive, foi repreendida publicamente pelo diretor. O jornal Folha de S.Paulo publicou uma nota dizendo que “a cúpula da Globo” iria “enquadrar” Suzana Vieira por seus “ataques de estrelismo”, e comentários desse tipo têm frequentado a mídia, embora sem citar nomes. Nas gravações da quarta-feira 20, dia em que a equipe de ISTOÉ esteve presente no Projac, a atriz chegou bem-humorada ao estúdio. Após uma cena em que Do Carmo manifesta saudades de Dirceu, Suzana provoca risos ao gritar com sotaque nordestino: “Eu amo este homem, xente!” Noutra, em que seria carregada no colo por Mayer até a cama, protestou. “Pegar no colo de novo, não, coitado… Esse negócio é muito antigo. Acho melhor ir andando e agarrando.” Aplaudida pela ala feminina da equipe técnica, obteve o apoio de Mayer. “Então, vamos nas pernadas, nas pegadas, mão na mão, coisa na coisa”, disse o ator. No intervalo, a protagonista canta – e bem – músicas do CD de Maria Rita.

em mais nem menos, entretanto, Suzana mostra irritação e essa repentina mudança de humor parece deixar a equipe pisando em ovos. Quando alguém diz que o ventilador que simula um leve vento nos cabelos da personagem estava muito forte, ela rebate: “Não está não.” O comentário soa como ordem – e ninguém questiona. Suzana não quis dar entrevista a ISTOÉ, preferindo enviar um depoimento por escrito. “Acho que motivos não faltam para o sucesso de Senhora do destino. Temos um texto maravilhoso, uma equipe – maquiagem, produção, figurino, elenco, direção – que trabalha em total sintonia, uma obra com a qual o brasileiro se identifica. Temos drama, comédia e amor; falamos de família e valores, muitos até já esquecidos pela sociedade, como a honestidade, o caráter e o afeto. A Maria do Carmo é uma mulher corajosa que, mesmo com os percalços da vida, não parou de sorrir”, escreveu.

Criatividade – Para Wolf Maya, não há clima ruim, só “sucesso fulminante”. Ele chama o elenco de Seleção Brasileira de Atores, mas confessa que dirigir uma telenovela “é um jogo diário de criatividade, emoção e risco”. Em seu caso, ainda um exercício de contorcionismo, já que precisa se desdobrar para decorar o próprio texto e inteirar-se do dos outros. De boné, jeans e papéis nas mãos, o diretor chama Renata, com o rosto desfigurado pela maquiagem, de “Scarface” – cicatriz no rosto, em inglês, e nome do famoso gângster do cinema. A gravação se encerra com Renata mancando, apoiada por uma vassoura embaixo do braço. Não sem antes soltar um comentário: “Meu Deus, que mico!” A fala, obviamente, não foi ao ar.

A receptividade do público comprova que tudo está dando certo. O que não está agradando muito fica na conta da antipatia embutida nas personagens. Como acontece com a dupla Reginaldo (Moscovis) e Liliane (Letícia Spiller). Aguinaldo os defende. “O casal não pode agradar porque não foi feito para isso. O objetivo é mostrar, através deles, o que há de mais sórdido e abjeto nos políticos demagogos e populistas que infelizmente pululam por aí.” Outro casal que poderia estar restrito a uma singela trama paralela virou ponto forte. Trata-se de Barão (Raul Cortez) e Baronesa (Glória Menezes), dupla que fala da terceira idade sem osteoporose e melancolia. “Eles celebram a vida a cada momento, mostram que a idade é interna”, diz Cortez. Autoras do recém-lançado livro Pessoal e intransferível, Sylvia Leal e Regina Protasio mostram que a ficção está em sintonia com a realidade. “É a reinvenção da maturidade”, escreve Sylvia. Glória faz a ponte com a trajetória da dupla. “Usamos nossa experiência em comédia fina”, explica. O casal tem recebido muitas cartas de fãs. “Uma menina de 16 anos disse: ‘Vocês são dois fofos!’ Depois, contou que está aprendendo francês para mostrar que também tem requinte.”

Segundo a pesquisadora de história do teatro Tânia Brandão, manifestações de afeto como essa se devem ao fato de “esses atores consagrados estarem inscritos no coração dos brasileiros”. O que ela chama de “sentimento de familiaridade” foi alvo de pesquisa da doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de pós-graduação da Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos) Jiani Adriana Bonin. “A telenovela desempenha um papel no acionamento e na reconstrução das marcas da memória familiar”, escreve Jiani na revista Ciberespaço, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Para o bem ou para o mal, se está de volta aos tempos da telenovela como paixão nacional.