Alguma coisa acontece no coração de São Paulo e não é na esquina da avenida Ipiranga com a São João. Um pouco mais adiante, no cruzamento com a São Luís, a elegante e discreta Chrissie Hynde, líder dos Pretenders, alugou um apartamento que está sendo sua base de operações enquanto excursiona pelo País acompanhada pelo trio Moreno + 2. Na quinta-feira 11, ela se apresenta em Porto Alegre. No dia seguinte, no Rio. O namoro com o Brasil começou durante a temporada de Caetano Veloso no Baretto paulistano, no final do ano passado. Entre os músicos que o acompanhavam estava Moreno, seu filho mais velho, aplicadíssimo ao violoncelo. Assim que pousou os penetrantes olhos castanhos sobre o jovem, a bela Chrissie não resistiu ao que viu e ouviu. Vegetariana, nem remotamente aparentando seus 53 anos, Chrissie é partidária de uma espécie de “resistência ativa”. Diz que não defende animais: ataca seres humanos torturadores. Coerente, escolheu como local da entrevista o restaurante Nutrisom, no centro de São Paulo. De jeans, botas, casacão acinturado e a indefectível franja cobrindo a testa, almoçou dois pratões de comida, com muito feijão e banana. “Venho aqui porque, além de ficar perto de casa, Telmo, o dono, é um atleta e administra o único lugar do mundo onde eu vi policiais vegetarianos.”

Findo o almoço, a roqueira passeou pela São Luís, admirou São Paulo do 41º andar do Edifício Itália e mostrou seu apartamento, com vista para o prédio do arquiteto Artaxo Jurado. Segundo ela, a festa de seu próximo casamento será realizada no terraço do edifício. “Isso se eu me casar de novo, o que acho difícil, pois não tenho mais idade para ter ou merecer paciência”, ironiza. Ágil e bem-humorada, Chrissie é o perfeito cruzamento entre a top model Cindy Crawford e o guitarrista Keith Richards. Americana, nascida em Akron, Ohio – “o meio do nada”, em suas palavras –, ela montou seu primeiro conjunto na escola com os irmãos Motherbaugh, do futuro Devo. Aos 23 anos, aterrissou em Londres, no auge do punk, passando a frequentar a butique Sex, de Malcom MacLaren. Lá conheceu e se tornou amiga de Sid Vicious e do pessoal do Clash. Chrissie se virou como pôde, trabalhando, inclusive, como jornalista. “Jamais quis escrever”, justifica. “Apenas conhecia música e precisava de dinheiro.”

Em 1978, gravou uma demo com músicas próprias e covers, acompanhada de amigos. Estava criado os Pretenders – algo como os fingidos ou os usurpadores –, banda de existência trágica, que logo após o segundo disco foi desfalcada de dois de seus músicos, mortos de overdose. A cantora e guitarrista se manteve de pé. Mãe de duas filhas – Natalie, 21 anos, de seu casamento com Ray Davies, dos Kinks, e Yasmin, 19, de Jim Kerr, líder do Simple Minds, ela foi casada também com o colombiano Lucho Brieva, 14 anos mais novo. Como Bob Dylan , cuja autobiografia acaba de ser lançada e foi por ela “folheada”, Chrissie cultiva um “desprezo pela fama”. A primeira vez que um sujeito a abordou chamando-a pelo nome no metrô londrino, ficou aterrorizada. “Me dei conta de que ele sabia muita coisa sobre mim e eu nada sobre ele”, diz.

O vegetarianismo, a leitura do Bahagavad Gita e a vocação para ser uma pessoa normal a afastaram da badalação roqueira, dos peitos com silicone  e do mundo fashion, segundo ela “o último prego batido no caixão da cultura ocidental”. O espetáculo de abertura da turnê, no final de outubro no DirecTV,  em São Paulo, foi pontuado por ofensas a carnívoros em geral e negativas veementes a tocar rock. Trocando a guitarra Telecaster pelo violão Guild, sentada, com o guitarrista Adam Seymour de um lado e Moreno do outro – além de Kassin e Domenico, os + 2 –, Chrissie abriu a noite com Empty boat, música do “álbum branco” de Caetano, de 1969. Na sequência, tocou Nenhuma, do Moreno + 2, Bless you, de John Lennon – de quem cantaria também Don’t let me down –, e Stop your sobbing, que, a exemplo de outros hits do grupo, foi suavizada e adornada de violoncelo. A “velha e boa” Chrissie Hynde só irrompeu ao interpretar com sua bela voz de contralto I wish you love, do repertório de Frank Sinatra. Andando pelo palco, desafiou a platéia. “Isso é para vocês verem como meu corpinho ainda está lindo.” Ao ser aplaudida de pé, esbravejou. “Mas que babaquice é essa, vocês estão pensando que estão em Las Vegas?” Está aí mais uma justificativa de ter escolhido São Paulo como segunda casa.