Vestida em tons berrantes, Zahara (Gael García Bernal) invade o recinto privado de um salesiano para um insólito ajuste de contas. Abusado na infância pelo Padre Manolo (Daniel Gimenez Cacho), o travesti quer que o religioso lhe dê uma fortuna para que faça uma plástica e entre numa clínica de recuperação de drogados. A cena pode parecer absurda, mas conduzida pelo gênio cinematográfico de Pedro Almodóvar em Má educação (La mala educación, Espanha, 2004), em cartaz nacional na sexta-feira 12, ganha uma naturalidade desconcertante. A sensação aumenta à medida que o filme se desenrola nos labirintos de paixão do espanhol. Na verdade, Zahara, especializada em dublar a atriz e cantora Sara Montiel – e que se passa pelo irmão Ignacio –, não existe. É personagem do filme A visita, que está sendo rodado por Enrique Goded (Fele Martínez), ele sim um personagem real e amigo de colégio de Ignacio, o garoto que sofreu abuso.

Este último se tornou um travesti e está penando para se livrar do vício da heroína. Vive com seu irmão Juan (Bernal, em papel duplo), um ator oportunista investido da frieza de uma “mulher fatal” que veste sua identidade para ter o papel de Zahara no filme de Enrique. Parece confuso? Nem tanto. Almodóvar definiu a estrutura de
Má educação, cuja temporalidade salta da repressão franquista dos anos 1960 à década maluca da Movida madrilhena dos anos 1980, como bonecas russas que se escondem uma dentro da outra e que, ao final, são uma só – exatamente como o filme dentro do filme de sua nova história. Trata-se de um artifício engenhoso, que mistura lances de melodrama com achados do gênero noir.

O que, então, torna o filme decepcionante? É que, justamente quando toca em assuntos tão íntimos como sua educação católica, os personagens de Almodóvar não convencem. Os padres são caricatos e a amizade dos meninos Ignacio e Enrique soa completamente implausível. Almodóvar afirmou que não quis fazer um filme anticlerical e muito menos ajustar contas com sua má educação salesiana. Garantiu também que a figura do ator Juan não tem nada de Antonio Banderas, com quem rompeu depois de Ata-me (1990). A história também não tem nada de autobiográfico, embora não tenha inventado um lance sequer. Pela primeira vez, contudo, na sucessão de grandes títulos como Carne trêmula, Tudo sobre minha mãe e Fale com ela, seu coquetel venenoso de homossexualismo, drogas e religião se mostra quase inofensivo.

Para todos: Almodóvar, que afirma não fazer filmes gays para platéias gays, levou dez anos para filmar a história e testou 45 atores até se decidir por Bernal