"No ano em que completei noventa anos, quis presentear-me com uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.” Assim, direto e sem rodeios, o escritor colombiano Gabriel García Márquez convida o leitor a participar do fluxo de consciência do narrador de Memoria de mis putas tristes, sua mais nova ficção em dez anos. Ao contrário do que o título possa sugerir, não se trata de um relato autobiográfico, mas de uma reflexão romanceada sobre o amor na terceira idade. Polêmico em quase todas as obras que escreve, García Márquez – o Gabo de amigos chegados e fiéis leitores – mostra mais uma vez por que figura há tantos anos na lista dos best sellers. Lançada no dia 20 de outubro nos países de língua hispânica, Memoria de mis putas tristes superou as expectativas de venda. Editada na Espanha pela Editora Mondadori, nos países andinos e no México pela Editora Norma, e nos países do cone sul pela Sudamericana, só na primeira semana a obra teve 400 mil exemplares vendidos. Ou seja, o equivalente a 40% da tiragem da primeira edição. Na Espanha, foram 225 mil, o que obrigou a Mondadori reimprimir, de emergência, mais 100 mil exemplares na semana passada. No Brasil, onde a edição espanhola pode ser adquirida ao preço de R$ 52,90, os direitos pertencem à Record, que guarda o lançamento a sete chaves. Não divulga como o livro se chamará nem quando chegará às lojas.

Segundo Ricardo Cavallero, diretor da Mondadori, o novo título de Gabo gerou uma expectativa inédita no mercado, ultrapassando o âmbito estritamente cultural. “Este é o livro de García Márquez que teve o mais rápido impulso de vendas em todos os países onde foi distribuído”, declarou. Originalmente, o lançamento oficial da novela estava previsto para o final de outubro. A pirataria, entretanto, acabou antecipando em dez dias a chegada às livrarias. Em Bogotá, por exemplo, dezenas de ambulantes vendiam cópias do romance pela metade do preço. Para deter a desova de piratas, lançou-se o rumor – plantado, provavelmente, pela própria editora – de que Gabo teria mudado o final do livro. Em artigo do dia 21 de outubro, o jornal colombiano El Tiempo afirma que comparou as duas edições e certificou-se de que os finais eram idênticos. Segundo o jornal, o livro pirateado continha, ao contrário do que a editora informava, pouquíssimos erros em relação ao oficial.

Aniversário – No enredo circular em que se desenvolvem as aventuras do nonagenário, cujo nome nunca é revelado, o final e o início coincidem com o aniversário do protagonista. Na noite de 26 de agosto de um ano não identificado, o narrador, um velho jornalista, se apaixona por uma “bela adormecida”, referência explícita ao livro. A casa das belas adormecidas, do japonês Yasunari Kawabata, Prêmio Nobel de Literatura em 1968, que serviu de epígrafe à novela. A tal bela, encomendada pelo narrador à cafetina Rosa Cabarcas, é carinhosamente apelidada pelo protagonista de Delgadina. O codinome se deve às feições delgadas e também ao nome de uma cantiga popular. Cantarolando os versos da tal canção ao pé do ouvido da virgem, o personagem acaba se apaixonando pela menina, que na maior parte do livro é descrita dormindo.

E assim, em meio a devaneios do nonagenário, as 109 páginas do livro voam sem que o leitor se dê conta de que está chegando ao final. A verossimilhança da narrativa, que pontua com precisão o desenrolar paulatino de um ano exato, aproxima o leitor do narrador, como se ambos padecessem da mesma enfermidade do amor senil. Nota-se, entretanto, muito mais o frisson adolescente da paixão que o peso da idade, detalhe que funciona como divisor de águas. Atrai os leitores e distancia os críticos. Em nenhum momento o personagem assume o espírito senil. Diz “estou ficando velho” como se tivesse 40 ou 50 anos. Muitos condenaram a novela como obra menor em razão dessa vitalidade sexual invejável. Para ficar num caso real, esqueceram, por exemplo, do cantor cubano Compay Segundo, morto no ano passado, que também se casou com uma jovem aos 90 anos. Ao compositor, a paixão tardia lhe rendeu a belíssima letra de En el tronco de un árbol una niña, e ao narrador de Memoria de mis putas tristes, uma excelente história para contar.

Num trecho polêmico, lê-se: “Encontrei uma ninfeta melhor do que as que buscavas, mas tem um problema: anda apenas por seus catorze anos. Não me importa trocar-lhe as fraldas, disse brincando, sem entender seus motivos. Não é por você, disse ela, mas quem vai pagar os três anos de prisão?” A despeito das críticas, é sempre bom lembrar que coexistem dois Gabos no mundo da literatura. Aquele mais admirado e inventivo, autor de Cem anos de solidão, se mantém escravo da obra que, além de lhe render o Prêmio Nobel em 1982, o condenou à obrigação de escrever títulos igualmente geniais. O outro García Márquez, nem por isso menos genial, é o que surge diretamente do jornalismo. Este, como afirmou o crítico espanhol Masoliver Ródenas, do jornal La Vanguardia, tem o mérito de fazer com que “as hipérboles se adequem ao rigor da prosa”.  A exemplo de Crônicas de uma morte anunciada, Memoria de mis putas tristes revela a mesma exigência do texto jornalístico. Assim, por mais absurdos que sejam os fatos narrados, a coesão e a coerência os tornam críveis.

Lucidez – Tal “surrealismo verossímil” aparece em muitos momentos do livro. Especialmente na passagem em que uma mulher, vinda do nada, atravessa o caminho do narrador e diz: “Sou a pessoa que está procurando.” No mesmo instante ele se recorda que perto dali, onde procurava seu amor, vivem em liberdade os “internos mansos do manicômio municipal”. O que seria uma passagem aparentemente sem sentido tem sua razão de ser, como tudo nas obras de Gárcia Márquez. Mais adiante, o narrador ilumina o texto com sua lucidez. “Era, por fim, a vida real, com meu coração a salvo e condenado a morrer no bom amor da agonia feliz em qualquer dia depois dos meus cem anos.” Que agora não são mais os de solidão, e sim aqueles em que transbordam a sensação de amar e ser amado.