A história de Yasser Arafat está umbilicalmente ligada à do povo palestino. Em qualquer parte do mundo, ele sempre será reconhecido como o líder que, durante quatro décadas, lutou por um Estado palestino independente, liderando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Os métodos utilizados pela OLP para alcançar esse objetivo variaram do terrorismo, nos anos 70, às negociações de paz que resultaram no histórico acordo de Oslo, em 1993. Esse acordo rendeu o Prêmio Nobel da Paz a ele e ao então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, assassinado por um direitista israelense fanático em 1995. No dia em que se completaram nove anos deste atentado, na quinta-feira 4, a morte de Yasser Arafat, 75 anos, chegou a ser anunciada pela mídia israelense. O líder palestino estava internado na UTI do hospital militar Percy, em Clamart, nos arredores de Paris, cidade onde vive sua esposa, Suha, e sua filha, Zahwa. Em mais uma das controvérsias envolvendo Arafat, sua morte foi negada logo depois por um porta-voz do hospital. A confusão rendeu até uma saia-justa para o presidente americano, George W. Bush. “Que Deus abençoe sua alma”, disse Bush. Há dez dias, o líder foi transferido para a França “com problemas no sangue” e “dores no estômago”, mas a hipótese de leucemia foi descartada. Até sexta-feira 5, ele continuava em coma.

Seja como for, Arafat é considerado carta fora do baralho tanto pelos israelenses quanto pelos palestinos. Mas sua saída de cena vai embaralhar as cartas do Oriente Médio. Personalista e autoritário, o líder palestino não se preocupou em fazer um sucessor e agora o grande ponto de interrogação é sobre o que acontecerá na era pós-Arafat. O principal problema é que, mesmo sendo considerado corrupto, despótico e às vezes incompetente, não existe nenhuma liderança palestina com o carisma de Arafat. “Nunca haverá um líder palestino com capacidade de influenciar tanto nas decisões sobre seu povo como Arafat, seja para deflagrar o terrorismo, seja para pedir a paz”, afirmou a ISTOÉ Arie Zehavi, vice-presidente do Instituto Weizmann, em Jerusalém. Apesar disso, o analista considera que a “era Arafat” está enterrada e deverá dar lugar ao pragmatismo. Com essa tese concorda também Bassem Eid, do Grupo de Direitos Humanos da Palestina. Eid disse que o fim de Arafat dará lugar aos moderados “porque eles são mais abertos e capazes de levar adiante o processo de independência dos palestinos”.

Há dois anos, o líder da Autoridade Nacional Palestina estava confinado em seu quartel-general em Ramalá, na Cisjordânia, como um virtual prisioneiro do governo do premiê israelense Ariel Sharon, seu arquiinimigo, que o acusava de incitar a nova Intifada (segundo levante palestino, que se iniciou em 2000). O isolamento não era apenas físico, mas político. Os líderes palestinos da al-Fatah (braço armado da OLP) acusavam-no de incapacidade de conter a repressão israelense, de não realizar reformas na AP, de não respeitar as decisões do Conselho Legislativo Palestino e, finalmente, de corrupção generalizada. Nesse contexto, os grupos islâmicos radicais Hamas e Jihad Islâmica cresceram no cenário político com suas ações terroristas.

Para o analista Zehadi, ou os palestinos escolhem um líder capaz de promover eleições e reestruturar as frágeis instituições palestinas ou haverá uma ruptura na cúpula palestina, abrindo o caminho para uma guerra civil. Para evitar essa tragédia, alguns passos já foram dados. O ex-premiê palestino, Abu Mazen, e o atual, Ahmed Korei, apontados como prováveis sucessores de Arafat, começaram a reestruturar a Autoridade Palestina. Uma das questões mais polêmicas foi resolvida com a passagem do controle das finanças e da segurança – antes monopólio do líder da OLP – para as mãos de Korei. Articula-se ainda a idéia de, no futuro, incorporar o Hamas e a Jihad à AP. Caso haja eleições, o mais forte candidato deve ser o nomeado pelo al-Fatah.

Segurança – Israel teme que a morte de Arafat agrave o conflito entre israelenses e palestinos e traçou um plano para manter a ordem. Apesar disso, tanto israelenses como americanos admitem que, sem Arafat, as negociações de paz talvez possam caminhar. De qualquer maneira, a cidade de Jerusalém recebeu reforço na segurança. Arafat sempre expressou o desejo de ser enterrado na cidade sagrada, o que certamente a transformaria num barril de pólvora. O premiê Sharon proibiu o enterro de Arafat na cidade sagrada.

Arafat, que nasceu Mohammed Abdel-Raouf Arafat al-Qudwa al-Husseini, no dia 24 de agosto de 1929, no Cairo, Egito, sempre negou seu local de nascimento, afirmando que seu berço era Jerusalém, a cidade disputada como capital entre Israel e os palestinos. Quando sua mãe palestina morreu, ele, então com cinco anos, foi viver em Jerusalém com um tio, deixando na capital egípcia seu pai, um rico comerciante de tecidos da família Husseini e seus seis irmãos. O presidente da AP costumava dizer que se recordava pouco da infância, mas ficou cravada em sua memória a invasão da casa de seu tio pelas tropas britânicas. O ódio dos palestinos aos britânicos foi transferido para os imigrantes judeus quando, em 1948, foi fundado o Estado de Israel na Palestina, na época território habitado predominantemente por árabes muçulmanos. Os palestinos se espalharam pela região. Arafat, então, voltou ao Cairo para estudar engenharia. Em 1964, os países árabes criaram a OLP, da qual Arafat viria a ser presidente cinco anos depois.

Do terror à proposta de paz – Abrigados na Jordânia, Arafat e os guerrilheiros da OLP tentaram criar um poder paralelo e acabaram expulsos em 1970 pelo rei Hussein. Alojadas em Beirute, as tropas da OLP ali permaneceram até 1982, quando Israel invadiu o Líbano. Arafat se retirou então para a Tunísia. Foram 27 anos de exílio. No final dos anos 80, o líder palestino adotaria a moderação, reconhecendo o Estado de Israel e abandonando o terrorismo. Mesmo assim, apoiou Saddam Hussein na Guerra do Golfo (1991). Finalmente, depois da tentativa de acordo de paz promovido pelos EUA na Conferência de Madri, em 1992, vieram os históricos acordos de Oslo, no ano seguinte.

Parte da lenda em torno do nome de Arafat deve-se ao fato de ele ter escapado de 40 atentados, alguns deles arquitetados por Sharon. Mas o habilidoso guerreiro nem sempre foi bom negociador. Entre os erros táticos cometidos pelo líder palestino, talvez o mais grave tenha sido a rejeição, em 2000, do acordo proposto pelo então premiê israelense Ehud Barak, que oferecia autonomia palestina a 90% dos territórios ocupados. De lá para cá, nunca mais a pomba branca ensaiou um pouso em Israel. Paradoxalmente, a morte de Yasser Arafat talvez possa abrir novamente o caminho das negociações.