A indústria farmacêutica está embaraçada  em uma dramática contradição. Ao mesmo tempo que progride nas pesquisas que  criam tratamentos melhores e na cura para várias doenças, despeja nas prateleiras remédios com preços bem acima do poder aquisitivo da maioria da população. O escocês Bill Burns, 57 anos, confronta-se diariamente com esse problema. Ele é o diretor mundial da divisão farmacêutica da Roche, líder no desenvolvimento de medicamentos contra doenças como o câncer e a Aids, entre outras. Para justificar os preços, Burns tem na ponta da língua a cifra que uma empresa gasta no desenvolvimento de um novo remédio. “Em média, gira em torno de  US$ 800 milhões a US$ 1 bilhão”, informa. Esse custo acaba sendo cobrado do bolso do consumidor. Ele destaca, no entanto, que, em países onde a situação de saúde é emergencial, a Roche fornece remédios a preço de custo, como acontece em várias nações da África. O diretor da Roche mora na Suíça, onde fica a sede da empresa, e esteve no Brasil para reinaugurar a fábrica do Rio – um investimento de US$ 70 milhões. Durante a viagem ao País, Burns falou a ISTOÉ.

ISTOÉ – Por que os medicamentos têm preços tão altos?
Bill Burns –
O custo de desenvolvimento de um remédio está em média entre US$ 800 milhões e US$ 1 bilhão. Com os produtos farmacêuticos, muita gente leva em consideração os custos dos componentes químicos para reclamar dos preços dos remédios. Mas é preciso ter em conta que para desenvolver as drogas gastamos dez anos com um time de experts em pesquisas, na realização de testes, no cumprimento das obrigações governamentais. É isso que determina o custo.

ISTOÉ – O que é possível fazer para baixar os preços?
Burns –
Quando olhamos para uma indústria como esta, levando-se em consideração o risco de desenvolvimento de uma droga, constatamos que as leis de propriedade intelectual são muito importantes. Mas essas leis estabelecem que a patente dura 20 anos, a contar do início do desenvolvimento da molécula, incluindo o tempo para conseguir o retorno do investimento. Gastamos metade desse tempo desenvolvendo o remédio, algo entre dez e 12 anos. Só então teremos oito a dez anos para buscar o retorno da pesquisa. Esse período de recuperação de investimento existe para garantir o estímulo à pesquisa e à inovação, ou então nenhuma empresa investiria.

ISTOÉ – Então, aumentar a duração da patente seria uma saída para
baratear os remédios?
Burns –
Esse dilema afeta todas as indústrias. Como ter tempo de trabalho suficiente para conseguir um razoável retorno do investimento? Na microeletrônica, por exemplo, eles gastam dois anos criando um projeto e nós gastamos 12 anos nessa tarefa. De maneira geral, o tempo de patente é o mesmo no mundo todo, seja para a indústria de microeletrônica, a aeronáutica, seja para a farmacêutica: 20 anos. A diferença é o tempo que cada uma gasta desde a criação do produto até satisfazer os parâmetros do governo brasileiro, americano ou outros. Se você tem câncer e toma um remédio que faz cair seu cabelo, você está disposto a correr esse risco. Mas, se você tem gripe e seu cabelo cai, não está disposto a correr esse risco. É preciso pesar os benefícios do desenvolvimento de medicamentos e também o quanto isso pode ser arriscado – essa é uma das tarefas do setor farmacêutico. A questão das patentes não tem a ver com uma guerra da América contra o mundo ou da Alemanha contra o mundo, para citar duas nações poderosas nesse mercado. Patentes existem em todo o planeta. É impressionante ver como se desenvolveu uma tremenda indústria indiana depois das leis de patente e direitos autorais sobre programas de computador. Na indústria aeronáutica, a Embraer tem muitas propriedades intelectuais que ajudam nos negócios brasileiros. Na área farmacêutica, a palavra patente infelizmente se torna suja. Esse é o compromisso que a sociedade tem com as empresas farmacêuticas para que elas continuem desenvolvendo novos remédios.

 

ISTOÉ – Mas a contradição é cruel. A população sofre com várias doenças e a indústria farmacêutica gasta muito dinheiro e tempo de pesquisa para chegar à cura. Em alguns casos, o preço final fica tão alto que a maioria das pessoas continua impedida de curar esses males.
Burns –
Todas as sociedades fazem escolhas contraditórias. Quando eu trabalhava na África, era difícil entender por que os governos gastavam algo como 1% do PIB em saúde e 10% em armamentos. Essa foi a escolha do governo. Acredito que nossa responsabilidade se concentra principalmente em inovação, desenvolvimento, manufatura e registro do produto nos países. Praticamos os preços que achamos justificável para cobrir os gastos. Os governos também decidem quais são suas prioridades. Depois disso, sobre as escolhas das sociedades fazemos o que é possível. Há muito barulho em torno da Aids na África. A Roche vende seus remédios a preço de custo em 47 países no mundo. Muitos governos não criam programas para fazer chegar o remédio à população. Dou-lhe outro exemplo. A malária ainda mata mais de um milhão de pessoas por ano na África. Os remédios estão sem patente há muitos anos e nós não vemos ninguém realizando programas para aproveitar isso. A doença de Chagas tem uma alta incidência na América Latina e nós transferimos a tecnologia para o governo brasileiro. Como os laboratórios brasileiros ainda não estão conseguindo produzir a droga, a Roche doa 370 mil comprimidos. Na pesquisa da malária, desenvolvemos um produto que doamos para a Organização Mundial de Saúde.

ISTOÉ – A quebra de patentes assusta a indústria?
Burns –
A Organização Mundial do Comércio tem um tratado para encorajar o livre comércio que fez valer a lei de patentes. A exceção acontece em casos de emergência nacional ou se o fabricante não puder suprir a demanda. Nessas circunstâncias, o governo poderá quebrar a patente pelo interesse da saúde pública. O que não é aceitável é usar esse artigo como uma intervenção comercial. Na área da Aids, por exemplo, a indústria nunca falhou no momento de entregar a droga. Esse argumento não pode ser usado. Na África, eles quebram patentes, mas o preço oferecido pelos governos é mais alto que o praticado pelas indústrias. Quanto à Aids, tenho de cumprimentar o governo brasileiro. O País alcançou uma razoável liderança na prevenção à doença. Estão fazendo um bom trabalho.

ISTOÉ – Qual o futuro dos remédios?
Burns –
Estamos conseguindo melhores diagnósticos, estaremos mais aptos a detalhar certas doenças. Outro avanço são os remédios segmentados. O grande exemplo da Roche é o Herceptin, para o câncer de mama. Esse medicamento não é indicado para todas as mulheres que têm esse tipo de tumor. Num simples teste encontramos 20% a 25% de mulheres que responderam melhor ao tratamento com a droga. Isso quer dizer que as mulheres com câncer de mama não serão expostas a efeitos desnecessários. O remédio agirá especificamente nas pessoas que poderão ter reais benefícios. Quando falamos da indústria farmacêutica pelo ponto de vista econômico, muitas pessoas pensam que tratamos apenas de dinheiro. Devo dizer que quando vou para o trabalho busco fazer a diferença na vida das pessoas. O resto vem depois.

ISTOÉ – Quais as novidades contra o câncer e a Aids?
Burns –
A Roche tem cinco drogas para o câncer e outro medicamento para o linfoma que chega até mesmo a curar (Mabthera). Há outro que resulta num benefício importante para pessoas com câncer colo-retal, que ainda não foi lançado no Brasil. Uma outra droga para câncer do pulmão, o Tarceva, está sendo testada. Antes deste medicamento, uma em cada cinco pessoas tinha chance de sobreviver pelo menos um ano. Com o medicamento, uma em cada três pode chegar a um ano de sobrevivência. Serve também para o câncer pancreático. Contra a Aids, os problemas são dois: nos países desenvolvidos, os pacientes estão se tornando resistentes a medicamentos cada vez mais fortes, enquanto na África é preciso resolver a questão de acesso aos remédios. Um remédio como o Fuzeon, que inibe a entrada do vírus na célula, seria usado na Europa, nos EUA e no Brasil (será lançado brevemente). É para pacientes que já desenvolveram alguma resistência a outros medicamentos.

ISTOÉ – O recolhimento do Vioxx abalou a credibilidade da indústria farmacêutica?
Burns –
É sempre triste quando acontece isso. Uma empresa somente submete uma droga à avaliação da autoridade reguladora, que dá a licença, depois de fazer teste com umas cinco mil pessoas. Apesar disso, à medida que esta droga atinge mais pessoas, podemos descobrir novos efeitos. Por isso é preciso que esses testes sejam realizados permanentemente. Nesse caso, a Merck, que é uma empresa muito responsável, concluiu que os riscos eram maiores que os benefícios.