A Comissão Parlamentar de Inquérito do Narcotráfico e a CPI do Roubo de Cargas devem muito ao caminhoneiro pernambucano Salvio Barbosa Vilar, 48 anos. Depois de participar por seis anos de um esquema de roubo de caminhões e tráfico de armas e drogas organizado por policiais paulistas, ele forneceu aos parlamentares informações que possibilitaram várias prisões. Desde que deu com a língua nos dentes, passou a temer por sua vida e a de sua família – ele é casado e tem três filhos. “Deputados prometeram que seríamos incluídos no programa de proteção à testemunha, mas tudo não passou de promessa”, cobra. Um filho, a ex-mulher e um primo de Salvio foram mortos e o resto da família vive escondido. Condenado a 18 anos e dez meses por assalto, ele tem direito a regime semi-aberto. Apesar disso, desde que foi transferido, por segurança, para a Divisão Anti-Sequestro, no Rio de Janeiro, a Justiça fluminense o mantém trancafiado. Ele elogia a conduta dos policiais da DAS, que garantem a sua sobrevivência, mas anda preocupado porque poderá ser transferido para uma penitenciária paulista a qualquer momento. “Se eu voltar, vou morrer. Os culpados serão os deputados das duas CPIs.” Num rasgo de humor negro, alguns policiais já tratam Salvio como Falecido e ele mesmo diz que se sente como se já estivesse morto. O caminhoneiro tem uma tradução própria para as três letras da famosa sigla CPI: Caminho para o Inferno. Ele conta seu drama a ISTOÉ e faz importantes revelações sobre roubo de carga e tráfico de armas e drogas no País, envolvendo caminhões de grandes empresas.

ISTOÉ – Quando o sr. começou a participar do esquema dos policiais envolvidos com o crime organizado?
Salvio Barbosa Vilar –
Fugi do hospital penitenciário em abril de 95, pagando US$ 5 mil aos PMs que tomavam conta de mim. Acabei sendo descoberto e, para não voltar a ser preso, tive de “trabalhar” para eles, o pessoal do Depatri (Departamento de Investigações sobre Crimes Patrimoniais) e do Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado). Eles apreendiam as cargas roubadas e revendiam para grandes lojas. A maioria desses casos atualmente não é de roubo, e sim de desvio de cargas, em que existe a conivência dos motoristas que conhecem grandes receptadores desse material. O caminhão some e depois a ocorrência é registrada como roubo. A partir daí, vende-se a carga roubada para lojas que ou vendem ou repassam para os camelôs revenderem.

ISTOÉ – E os caminhões roubados?
Salvio –
A maioria das carretas e dos caminhões trucados que são roubados está em Belém, nas grandes madeireiras. Essa carreta fica um, dois, três anos puxando madeira no meio do mato, com placa fria. Lá não tem polícia, não tem nada. Estive lá em algumas dessas madeireiras com a Polícia Federal e os agentes constataram que eu falo a verdade.

ISTOÉ – E quanto às drogas?
Salvio –
Nas apreensões de drogas, acontecia o mesmo que no caso das cargas. Uma parte era apresentada à imprensa e outra revendida pelos policiais.

ISTOÉ – Parece um esquema muito rentável…
Salvio –
Ali corria mais dinheiro que num banco. O ladrão de carga era preso, mas pagava e ficava livre. Vi acertos de R$ 700 mil e de R$ 1,5 milhão.
A minha tarefa era somente entregar, principalmente droga. Cheguei a levar 100, 200 quilos. Uma vez levei uma grande quantidade, uns 60 quilos, para uma residência no Morumbi, em São Paulo. Transportei para Recife também. Os nomes dos policiais eu já denunciei à CPI. Alguns foram presos e outros estão soltos.

ISTOÉ – E quanto às armas?
Salvio –
As armas eram divididas entre o grupo e algumas eram revendidas. Mas existem as grandes empresas transportadoras que levam cocaína e armas para São Paulo e Rio. São transportadoras que não levantam suspeitas. Qual o policial rodoviário que pára a carreta de um grande frigorífico do Sul? A outra é uma grande transportadora. Tenho como provar. Talvez os diretores das empresas nem saibam, mas tem gente lá dentro que coloca as marcas famosas em algumas carretas e usa esses nomes para fazer o transporte. Também clonam as notas fiscais. As armas que chegam ao Rio hoje vêm através desse esquema. Não é verdade que entrem pelo mar ou em ônibus que vêm do Paraguai. A polícia sabe disso.

ISTOÉ – Recorda-se de ter presenciado alguma dessas “apreensões”?
Salvio –

Lembro de um flagrante em Uberlândia em que as carretas foram apreendidas e os motoristas presos ficaram dois dias num hotel. O próprio motorista ligou para o responsável pela carga. Os policiais pediram R$ 2 milhões de acerto. Ele veio com R$ 1,5 milhão e o acordo era de que não se abrisse a carreta. Mas, antes de se chegar ao acerto, uma das carretas já tinha sido aberta e havia ali fuzis, pistolas, revólveres e cocaína. Os policais tiraram uma parte das armas, a droga ficou intacta. Receberam R$ 1,5 milhão.

ISTOÉ – Qual a origem das armas vendidas nesse esquema das transportadoras?
Salvio –
Sei que do Suriname vinham pistolas, metralhadoras HK, fuzis AK. As armas vêm de outros países para o Suriname e de lá são transportadas para cá. Pequenos aviões passavam em fazendas de Goiás e jogavam dentro de um lago a mercadoria, armas e drogas. Depois tudo é colocado nos caminhões e vai embora. Essas pessoas têm contato com o esquema comandado pelos grandes traficantes do Rio e de São Paulo.

ISTOÉ – Depois das denúncias, a CPI lhe deu algum apoio?
Salvio –
Minha mulher e meus filhos ficaram no Programa de Proteção à Testemunha enquanto durou a CPI. Depois, foi cada um por si. Prometeram trocar o meu nome, que eu mudaria de rosto, através de cirurgia plástica, proteção total, que não voltaria para o sistema penitenciário. Minha pena é semi-aberta. Se tivessem cumprido a promessa de reduzir a pena, eu não estaria devendo mais nada. Em cinco anos vi meus filhos uma vez e minha esposa duas vezes. Um filho meu de nove anos, que tive com outra mulher, foi assassinado em 1999. Como não conseguiram me matar, mataram ele. Morreram também uma ex-mulher minha e um primo. Recentemente quiseram pegar outro filho. Minha mulher vive sendo jurada de morte.

ISTOÉ – Quais os deputados com quem teve
mais contato?
Salvio –
Na CPI, tratei principalmente com Reginaldo Germano (PFL-BA), Celso Russomano (PP-SP), Laura Carneiro (PFL-PMDB), Moroni Torgan (PFL-CE), Robson Tuma (PFL-SP) e Oscar de Andrade, que hoje não é mais deputado, e com os senadores Romeu Tuma (PFL-SP) e Magno Malta (PL-ES). O que eu ganhei com isso? Nada. Estou largado, doente, com problema do coração. Meu coração está inchado, há poucos dias tive infarto e não fiquei internado por medo de morrer. Ligo para Brasília e ninguém toma providência. Agora, o juiz do Rio disse que vou voltar a São Paulo para fazer uma cirurgia. Estou indo para a morte. Vou para o Incor e depois para o sistema penitenciário. Aí, os presos me matam a mando da polícia. Estou assim, arriscado a morrer a qualquer hora.

ISTOÉ – Qual seria a solução?
Salvio –
Eles cumprirem o que falaram. Os deputados deviam pensar que me condenaram à morte. Se sabiam que não haveria a redução de pena, que não prometessem. Se eu for assassinado amanhã, eles deveriam ficar com a consciência pesada. Será que me usaram só para se promover? Eu digo a quem for chamado para testemunhar em alguma CPI hoje: não vá. Programa de Proteção é mentira, eles não cumprem o que prometem. Você testemunha e é condenado à morte. Soube que pelo menos nove das testemunhas da CPI do Narcotráfico foram mortas. Não me considero mais um cara vivo.