A morte do jornalista Wladimir Herzog, 29 anos atrás nos porões do DOI-Codi de São Paulo, continua provocando baixas. Na quinta-feira 4, o ministro da Defesa, José Viegas, pediu demissão no desfecho de uma crise militar detonada no mês passado com a publicação, pelo jornal Correio Braziliense, de supostas fotos do jornalista ainda vivo no cativeiro (depois identificadas como de um padre). O Comando do Exército reagiu no mesmo dia da publicação, domingo 17 de outubro, com uma nota defendendo a violência do regime contra a oposição de esquerda. Viegas saiu disparando, numa carta dura onde classifica os autores da nota como “remanescentes da velha e anacrônica doutrina da segurança nacional”. Sem concessões à diplomacia, o embaixador reafirma que não foi consultado e diz que queria punir os responsáveis – no caso, demitindo o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, que fingiu não saber de nada. Em Nova York, o militar já tinha recebido e aprovado um fax com o teor da nota.

Viegas exigiu explicações de Albuquerque, ainda no domingo, e pediu sua  cabeça ao comandante supremo das Forças Armadas. Lula, mais diplomata,  trocou a demissão por uma nota de retratação. As duas primeiras versões militares foram rechaçadas. Finalmente, a terceira, com a revisão e frases do próprio Lula, surgiu na terça-feira 19, fruto de uma tensa reunião do presidente com Viegas e o general, que engoliu em seco. Quem não engoliu foi o ministro: três dias depois, Viegas foi ao Planalto entregar a Lula sua carta de demissão de duas páginas, escritas num tom raro em textos de despedida na República. Corajoso e altivo, Viegas, como responsável pela Forças Armadas, assume plena responsabilidade pelo caso. Mas se diz “surpreso e consternado” pelo texto divulgado pelos militares, “que dava a impressão de que o Exército ou os que redigiram a nota e autorizaram a sua publicação vivem ainda o clima dos anos 70, que todos queremos superar”. E conclama: “Já é hora de que os representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena”.

Ainda mais perplexo, Lula leu a carta e devolveu: “Não aceito, não vou pegar isso”, disse ao velho amigo, petista do Itamaraty há muitos anos. “Se o sr. não quiser, não pega. Mas ela fica aí”, insistiu Viegas. Dobrado pela resistência do ministro, Lula pediu uma trégua: segurar a demissão mais algum tempo, para após o segundo turno das eleições, enquanto pensava num substituto. A solução de sempre, o ministro Aldo Rebelo, da Articulação Política, já não servia porque tinha o carimbo partidário, como filiado ao PCdoB, e precipitaria a reforma ministerial que ainda não amadureceu. Mas um fato urgente antecipou a decisão: a agenda de Viegas previa para a quinta-feira 11, no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, o discurso de abertura da I Conferência de Segurança Internacional, com um plenário coalhado de generais. O Planalto tremeu: “Ele quer ir. Se for, vai discursar. E, se falar, vai dar crise”, alertou um interlocutor de Lula. O presidente resolveu sacar primeiro: na quarta-feira 3, convocou o vice-presidente, José Alencar, amigo de confiança, e acima dos partidos, para acumular o posto de ministro da Defesa. Na manhã seguinte, chamou Viegas, aceitou a carta e logo depois informou sua decisão aos comandantes das três forças.

Confusão – Um dos ilustres “representantes do pensamento ultrapassado” já tinha saído de cena dias atrás: o general Antônio Apparicio Ignácio Domingues, chefe do Estado-Maior do Exército e autor intelectual da nota maldita, como comandante em Exercício durante a viagem ao Exterior do chefe. Se Lula tivesse topado demitir Albuquerque na hora, como queria Viegas, teria de fazer o mesmo com Apparicio, o número 2 na hierarquia, para não premiar o autor da confusão com a promoção ao comando. Aprovado pelo Senado desde agosto como novo ministro do Superior Tribunal Militar, Apparicio apressou sua passagem para a reserva, deixando o caminho livre para o Planalto. O cargo está reservado ao general-de-exército Manoel Luis Valdevez Costa, atual comandante militar do Leste, sediado no Rio. É um representante do pensamento moderno do militar profissional, sem comprometimento “com os lamentáveis episódios do passado”, como advertia o ex-ministro. O sobrevivente da crise, Albuquerque, ainda permanece no cargo, mas está cada vez mais desgastado. Mais do que o futuro, o passado assombra Albuquerque: semana passada, ISTOÉ publicou documentos inéditos sobre a Guerrilha do Araguaia extraídos de arquivos das Forças Armadas. Arquivos que o Exército insiste em dizer que não existem. Explicar isso, nem com notas rancorosas.