Os chiquérrimos sapatos do estilista  britânico Manolo Blahnik são sucesso garantido em festas e passarelas. Mas  nos palanques podem derrubar candidatos. Na campanha municipal, a acusação de usar salto alto foi munição farta no duelo entre petistas e tucanos. Em 2002, Lula prometeu “governar com os pés no chão” e em setembro do ano passado, durante uma feira de calçados, o presidente foi presenteado com três pares de havaianas – que viraram febre no Exterior. O presidente poderia ter incentivado seus companheiros a aderir à moda. Talvez assim, com chinelos baixos, eles fizessem a campanha com os pés na terra. Urnas cerradas, o PT se surpreendeu com o baque da queda, depois de desfilar com o modelito de partido governista desde que Lula assumiu o Planalto.

Passado o velório eleitoral – na terça-feira 2 –, Lula anunciou: “A guerra acabou.” A municipal, porque a batalha de 2006 está só começando. “Hoje as campanhas são permanentes. Terminada a eleição, todos os políticos começam a campanha para a próxima. Quem perde procura imediatamente recuperar o eleitor perdido e quem ganha já pensa em como manter os que conquistou”, explicou o cientista político Francisco Ferraz, ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na quarta-feira 3, o presidente Lula recebia prefeitos vitoriosos no Planalto. Ao eleito em Osasco, Emídio de Souza, Lula aconselhou: “Não seja arrogante.” Horas antes, numa reunião da cúpula do PT com Lula, o adjetivo foi lembrado como um dos motivos para a derrota de Marta Suplicy. Além de incorporarem o discurso da humildade, os petistas identificaram um leque de erros: o PT fez chapas puro-sangue em capitais de grande densidade eleitoral, centralizou decisões na cúpula sulista, provocou traumas nos aliados, esqueceu a militância e foi abandonado pela classe média. “Temos que ver o que está acontecendo com a classe média”, advertiu o presidente Lula no encontro. Para saber a causa desse divórcio, o PT vai encomendar uma pesquisa de opinião.

Horas depois, o presidente da Câmara, João Paulo Cunha (SP), retumbava no Congresso: “Passamos um ano dizendo que iríamos corrigir o Imposto de Renda. Não fizemos. Temos que fazer”. “E 2005 deve ser o ano de transição para investimento em educação e em infra-estrutura, num modelo de desenvolvimento acelerado e de inserção social”, emenda o ministro da Educação, Tarso Genro. Para ele, o afastamento de boa parte da classe média representa o fim do segundo ciclo dos 24 anos de vida do PT (o primeiro ciclo foi até 1988, quando o partido conquistou justamente São Paulo e Porto Alegre). “O encerramento deste segundo ciclo se caracteriza por uma crise de ambiguidade em escala nacional. De um lado, o PT ainda com traços utópicos; de outro, o PT que  descamba para um acordo completamente fora dos parâmetros históricos, como em São Paulo com Maluf”, avaliou.

O presidente tem pouco tempo para mostrar serviço: um ano e meio. Isso porque em abril de 2006 a campanha deve começar a pegar fogo, quando os políticos com cargos devem deixá-los para disputar a eleição de outubro, que além do presidente vai eleger novos governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Lula tem uma imensa lista de desafios pela frente, e um deles é mostrar a que veio na Saúde – assunto que pautou vários embates municipais, principalmente em São Paulo. Mas as ações sociais voltadas para o combate à fome, como o Bolsa Família, são seu calcanhar-de-aquiles. No dia seguinte à eleição, o presidente fez um apelo aos eleitos no programa de rádio Café com o Presidente. “Os prefeitos que tomam posse no dia 1º de janeiro vão ter que ajudar o governo federal no cadastramento, no acompanhamento”, afirmou. Lembrou que o Bolsa Família atinge hoje 5,3 milhões de famílias e disse que chegará a 8,7 milhões até o fim de 2005. Lula espera que no ano de sua reeleição o programa já esteja beneficiando os 11 milhões de famílias que vivem abaixo da linha da pobreza.

A reeleição também passa pela recomposição dos partidos aliados. Na segunda-feira 8, Lula vai se encontrar com os líderes da Câmara e já pediu para conversar com os senadores aliados. Com o PSDB saído das urnas vitaminado, o governo tem pela frente uma árdua corrida de obstáculos. Ela começa pela cura de ressentimentos eleitorais, passa por terapias orçamentárias, reforma ministerial e decisão sobre a reeleição dos presidentes do Congresso. “O PT lançou candidatos demais. Precisamos acertar isso para 2006”, diz o presidente do partido, José Genoino. A maior obsessão do PT é uma tarefa hercúlea: transformar o PMDB em um aliado fiel. O PMDB é um partido-bacalhau: tem candidatos competitivos em quase todos os Estados, mas não tem a cabeça da chapa, um nome para a Presidência. Hoje a sigla está rachada entre os que apregoam o rompimento com Lula e os governistas (maioria). “Neste momento não vamos discutir se rompemos ou ficamos, mas não podemos mais ser adesistas. Ou fazemos coalizão de verdade com o PT ou tomamos nosso rumo”, intima o presidente da sigla, Michel Temer (SP). Mas os tucanos também estão de olho no partido que ainda tem o maior número de prefeituras no País. “Atrair o PMDB deve ser nosso esforço prioritário”, diz o senador Sérgio Guerra (PSDB-PE).

O governo terá também que administrar um curto-circuito na agonizante emenda de reeleição das Mesas do Congresso defendida pela dupla José Sarney (PMDB) e João Paulo, e que tem como opositor o líder Renan Calheiros (PMDB). Este impasse trava a pauta de votações do Congresso há um mês. Um dos projetos prioritários do governo é o de Parcerias Público-Privadas (PPPs), espinha dorsal para o investimento de obras em infra-estrutura. Mas as PPPs estão no Senado, onde o governo não tem maioria, e na volta das urnas o projeto vai enfrentar a ira dos ressentidos, como os pefelistas César Borges e seu padrinho Antônio Carlos Magalhães. Depois de participar de um convescote com Lula no meio da campanha, os dois agora acusam o governo de ter usado a máquina federal na disputa.

A autocrítica dos derrotados deve se estender também aos vitoriosos. O PSDB tem a tarefa de dar visibilidade nacional ao governador paulista Geraldo Alckmin. E precisa, ainda, refrear o ímpeto do governador mineiro Aécio Neves, que  tenta ganhar lugar na pista. Desde 1994, quando ganharam a Presidência  com Fernando Henrique, os tucanos foram acusados pelos petistas de usarem o salto alto. Perderam o Planalto em 2002 e, nesta campanha, o PSDB em coro  jurava que só usava havaianas. Um exemplo emblemático de que os vitoriosos devem ter o mesmo cuidado dos derrotados é lembrado pelo cientista político Francisco Ferraz. Um dos líderes na vitória contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill era recebido em triunfo nas ruas durante a campanha em 1945. Mas os eleitores deram maioria ao Partido Trabalhista de Clement Attle. “Para o povo, aquelas manifestações não eram apoio político, mas agradecimento pelos serviços que Churchill prestara à nação durante a guerra. Para os novos tempos os ingleses queriam outros líderes identificados com outras prioridades”, contou. Ferraz explica: “Na política, nem a vitória nem a derrota são definitivas.”